Zitão
- seção: entrevistas
“Alvorada é o começo, é a abertura da Folia.
Antes de você alvorar uma Folia você não pode fazer um cantorio. Não pode fazer um cantorio sem alvorar a bandeira. Então, depois que alvora você pode fazer qualquer obrigação, fazer um cantorio, fazer uma saudação de cruzeiro e de altar, passar dentro de qualquer uma igreja…
Mas, antes disso, sem alvorar não é possível.”
Entrevista com o guia de Folia Manuel Araújo de Souza (Zitão), morador de Planaltina-DF.
Encontro realizado na Praça São Sebastião, Igrejinha Velha, em Planaltina-DF, no dia 15 de maio de 2018.
Entrevistadores: Domingos de Salvi, Sara de Melo, Daniel Choma e Tati Costa.
Transcrição: Tati Costa. Fotos e editoração: Daniel Choma.
Domingos: O senhor é natural de onde?
Zitão: Eu sou Daqui de Planaltina mesmo. Só que quando eu nasci aqui era Goiás. Planaltina era município de Formosa, não era emancipada. Nos meus documentos eu sou goiano, mas sou daqui de Planaltina.
Domingos: Como era na época da sua infância?
Zitão: Ih rapaz, nessa época aqui era bom demais. Aqui não tinha energia… Sabe onde tem a pracinha? Ali era uma loja, a loja e a pensão. Só tinha essas duas, eram do finado Gastão, ele que fornecia a toda essa região de Planaltina. E todo mundo que vinha pra cá, era na pensão de dona Judite. Todo mundo já sabia, todo mundo era conhecido. A Vila Vicentina só tinha a Rua Piauí. O nome dela era Rua da Palha, ninguém conhecia por rua Piauí, e até hoje, entre os antigos, a gente ainda fala. Então tinha só ela. Aquela igrejinha São Vicente: a gente era criança e através do padre dessa própria igrejinha aqui, o padre Antônio, a gente foi fazer aquela igrejinha da Vila Vicentina. Aí reunia a gente, era criançada, todo mundo, uns iam carregar água, outros iam carregar adobe, que ela era feita de adobe, não era de… Que até acho que essa aqui é feita de adobe também. Essa aqui é bem antiga, mas essa lá a gente ajudou a construir. Tudo criança… Era uma festa pra criançada! Portanto a minha primeira comunhão eu fiz aqui nessa igrejinha. Nós morávamos lá na Vila Vicentina, na Rua da Palha, como a turma diz. Saía de lá pra vir todo domingo vir a missa aqui, porque de noite não podia vir que não tinha energia, não tinha nada, a energia aqui era lampião mesmo. Então a gente nunca tinha aquela audácia de sair à noite. Só quando era lua clara. [Risos.] Vamos dizer, da versão do lobisomem, andava na lua clara… Até hoje a gente tem essa versão aqui por Planaltina. Igual eu te disse ontem, eu fui pra Brasilinha, mas estou doido pra voltar de novo pra terra natal, pois a gente não acostuma. Nessa Planaltina velha só existia essa rua aí, em volta dessa igreja aqui tudo era pasto. Que o pessoal que vinha da roça soltava cavalo, soltava boi – que eles vinham de carro de boi. Eu mesmo cansei de vir, a fazenda nossa era ali perto do núcleo rural Tabatinga, você conhece? Pois é, a fazenda nossa era ali. A gente vinha de carro de boi pra trazer coisas pra vender para esses lojistas. Era farinha, toucinho, rapadura, essas coisas da roça… Queijo, vinha um carroção de boi com seis bois. Vinha lotado, vinham dois três de lá, era dois dias pra vim de lá pra cá. Mas muito bom, enfrentamos… Nessa época não tinha asfalto não tinha nada. Quando o carroção atolava na estrada, se era perto das árvores, a gente dormia debaixo… Muito bom, a vida.
Domingos: O senhor trabalhava na lavoura?
Zitão: Trabalhava, toda vida a gente trabalhou. Desde criança, o negócio era trabalhar na lavoura. Agora depois de velho que eu fichei, depois que eu já tinha uns trinta e poucos anos que eu fui trabalhar na Fundação Zoobotânica, que hoje em dia é Secretaria de Agricultura. Trabalhei lá dezesseis anos, foi a única época que eu trabalhei fichado. Inventei de trabalhar com máquina, caminhão, essas coisas. Mas o mais era só na lavoura, direto. E aí saí de lá, e nunca mais me importei de trabalhar fichado. Agora esperando aí pela aposentadoria… [Risos.] Pra gente poder curtir mais as Folias, mais de perto!
Domingos: Nessa época em que o senhor fala que andava à noite com a lua clara, tinha histórias de lobisomem, essas coisas?
Zitão: Não, eu falo assim… Histórias de lobisomem são aquelas histórias que os caipiras cantam, aquelas músicas da lua clara… Aí a gente tira, fala assim uma versão, mas eu mesmo nunca vi! [Risos.] E nem quero ver!
Daniel: Mas o pessoal contava muita história?
Zitão: Os antigos, rapaz, contavam tanta história gostosa que eu vou te contar. A gente alembrar… Um dia é pouco!
Domingos: Nessa época em que o senhor era criança, já tinha Folia, viola?
Zitão: Já tinha muita Folia, todas, vish… Folia é de muitos anos, isso aí já tinha. Mas eu mesmo fui vir preservar a Folia, assim, pra girar Folia já estava com uns quarenta anos. Lá na roça, onde eu morava, tinha uma fazendinha ali do Café Sem Troco, davam muito pouso de Folia lá. Mas não tinha aquele negócio de acompanhar não, só gostava demais… Mas na minha casa. Depois inventei de acompanhar, rapaz, e aí o negócio, o bicho pegou. Inclusive nesse jornalzinho aí está o fundador dessa Folia que vem pra aqui pra Planaltina. O nome dele é Dercídio, mas aí está no apelido, Dizo, que é o pai desse menino, desse Miro, do Miro Alves, esse que está fazendo o bendito de mesa aí. É o pai dele, já faleceu esse ano. Esse é que foi a pessoa que incentivou a gente a girar Folia. Inclusive a primeira Folia que eu girei, todinha foi com ele. E comecei… Eu pegava uma viola dessa, tanto fazia eu tocar ela assim como assim. Pra mim era uma coisa só, não sabia de nada. Comecei na Folia, na Folia que eles giram no Córrego Rico, que vinha pra ir pra Brasilinha, comecei mais ele lá. Ele me chamou e falei “ah, vou lá nessa Folia, não conheço esse lugar…” Aí comecei ajudando ele a cantar. Quando foi no meio da Folia… Aqui e acolá eu pegava na viola, aprendi algumas posiçõezinhas assim, só conversando. Quando foi no final no dia, que a Folia chegou, eu contraguiei pra ele. Ele ficou até assim meio, “uai, o negócio está ficando bom”. E daí pra cá, graças a Deus eu fui e agora sou considerado assim, como um guia de Folia. E todo mundo… Em tudo quanto é canto a gente é conhecido, graças a Deus, e é bem amparado pelo pessoal da região. Gosto muito das Folias, uma pena que a gente não pode ir em todas! [Risos.]
Domingos: E o senhor lembra da primeira Folia que guiou?
Zitão: A primeira Folia que eu guiei foi a Folia do Sarandi. Em 2002 que eu guiei essa Folia. Não, não, não foi 2002, foi em 1998 que eu guiei a primeira Folia. Foi essa lá e eu guiei ela por uns anos, até 2016. Aí tem dois anos que eu não guiei ela mais, que ali já está ficando uma área meia… Inclusive a igreja de Nossa Senhora de Aparecida lá do Sarandi, o primeiro dinheiro que entrou nela foi incentivado pela Folia do Divino. A mulher lá deu o terreno e eu falei: a gente vai alvorar a Folia nem que seja no lugar de construir ela. E alvoremo no lugar de construir ela – e ela está construída lá. Todo ano, acho que ela recebe mais dinheiro da Folia do que do próprio pessoal mesmo. Todo ano a gente tinha uma requisição boa lá naquela época, na faixa de dois mil, dois mil e quinhentos. Rapaz, aquilo já era um avanço na igreja e agora ela está uma igreja bonita que só. É a igreja de Nossa Senhora Aparecida. Muito boa. Aqui em Planaltina eu não sei nem quantas Folias eu já guiei, na roça também. Agora nós temos uma na Rajadinha que é do Divino também, que está mais ou menos com uns dez anos que a gente guia ela lá. Essa eu não guio não, sabe? Eu sou contraguia dela, mas é porque a gente quis dar uma chance para um outro rapaz que é de lá e ele tem uma fluência. Aí eu falei: “eu boto você aí pra guiar a Folia, eu vou ser seu contraguia”. E toda vida, se eu não estiver contraguiando ela lá, não sai com a Folia. E fica sendo assim: ele está na frente, mas todo encontro quem resolve é a gente. Convido a vocês pra ir participar com ela lá com a gente. Muito boa a Folia, assistir, essa lá é boa, tem cavalo, tem carro, é de tudo quanto é jeito, é de pé, de todo jeito.
Domingos: E o senhor guia tanto Folia do Divino quanto Folia de Reis?
Zitão: Também. Guio Folia do Divino, Folia de Reis, Folia de São Sebastião, Nossa Senhora Aparecida. Já guiei na Marajó a Folia de Nossa Senhora de Aparecida, Folia de São João, isso tudo. Todas essas Folias a gente participa.
Domingos: Tem bastante Folia aqui nessa região?
Zitão: Tem, na região tem bastante, tem muita Folia aqui na região de Planaltina. Agora mesmo tem essa que vai chegar aqui agora, domingo. Tem essa aí, tem a da Rajadinha, tem das quebradas dos Neri, que é lá no Café Sem Troco, tradição antiga mesmo. Essa aí acho que tem bem uns cem anos que tem ela. Aí tem também aqui na Rajadinha, tem essa do Divino, tem de São Sebastião, tem Folia de Reis. Só que essas Folias que a gente guia, elas não são uma Folia vista assim dentro do padrão. Só é vista na igreja mesmo que a gente tira autorização, mas no padrão de ministério assim ela não é vista não. É Folia mesmo que a gente faz só a gente mesmo, junto com o pessoal. Igual eu te disse aquele dia, tudo a gente gasta, é gasto da gente, a gente não recebe ajuda de ninguém.
Domingos: E muda o toque da viola em cada tipo de Folia?
Zitão: Muda, muda. Cada Folia tem uma toada diferente, cada uma é uma demonstração diferente. Folia do Divino, ela um modo, Folia de Reis ela é outra, São Sebastião ela é outra, Nossa Senhora Aparecida… Nossa Senhora Aparecida quase que é a mesma dos Reis. É pouca coisa que muda.
Domingos: O senhor pode mostrar um pouquinho como que é do Reis?
Zitão: Deixa ver se eu alembro alguma coisa! [Toca trecho na viola.] Essa é que é do Reis. Precisa cantar não, ou vocês querem que faça um pedaço?
Domingos: Seria bom!
[Toca viola caipira e canta:]
Que Deus vos salve alegre hora
Ai Deus vos salve alegre hora
Que os três Reis aqui chegou
Que os três Reis aqui chegou.
Vem dentro desta morada
Aqui dentro desta morada
Abençoai os morador
Abençoai os morador.
Zitão: Essa aí é uma parte, porque se for cantar inteira… Agora qual que você quer, do Divino?
Domingos: Como que é a do Divino?
Zitão: A do Divino.
[Toca viola caipira e canta:]
Deus vos salve alegre hora
Deus vos salve alegre hora
Deus vos salve a claridade
Deus vos salve as três pessoas
Deus vos salve as três pessoas
A santíssima trindade.
Zitão: Essa aí já é do Divino.
Domingos: E a de São Sebastião?
Zitão: E a de São Sebastião quer também um pedacinho?
[Toca viola caipira e canta:]
Que o mártir São Sebastião santo
É o altíssimo rei da glória
Ele vem nos visitar
E também pedir uma esmola.
Zitão: Essa é de São Sebastião. Agora de Nossa Senhora Aparecida a gente canta em qualquer uma. Mas essas daí é uma das três, que é daqui de Planaltina mesmo.
Domingos: E qual que é a função do guia?
Zitão: A função do guia… É quase a mesma coisa que o presidente! [Risos.] Ele é quem manda em tudo. Inclusive até nas coisas assim de, por exemplo, arranjar policiamento pra ir na Folia, pra ajudar a gente lá, é função do guia na Folia. Os outros, os Folião, a gente que participa, o guia que participa, que dá toda assistência pros Folião, dá as tarefas também pra todos eles. O guia é o último que vai dormir. É difícil moço, a profissão de guia é meia braba, viu? Mas tudo que existe numa Folia tem que ter a participação do guia. Nessa Folia nossa aqui da Rajadinha, a gente tirou som automobilístico, tirou tudo. Isso dá um trabalho pra gente… O guia que é responsável, a gente tem que correr atrás disso tudo. A responsabilidade é muito grande, é um negócio que eu vou te contar, a gente acha que não é mas é. Por exemplo, que Deus o livre, nunca que a gente pede isso, mas se acontecer qualquer acidente na Folia, a gente é responsável. Se for preciso, se tiver delegacia a gente é obrigado a ir depor. O negócio não é fácil não, é complicado mesmo. A última Folia que eu guiei lá no Córrego Rico, no dia da alvorada da Folia, morreu uma mulher lá. Aí teve que ter a participação do guia pra poder ter a liberação do corpo. O negócio, a gente acha que é fácil… Quer dizer, pra quem não está dentro acha que é muito fácil, mas não é. Eu mesmo, fora de toda brincadeira, se eu pudesse, se não fosse o caso, eu só fazia é ajudar… [Risos.] Mas o pessoal muitas vezes exige que a gente esteja junto. (Continua…)