Tião Violeiro

“Chamavam de Os três batutas do sertão: Raul Torres, Florêncio e Nininho. Eu morava na roça, dez anos de idade, meu avô mandava ligar o rádio pra pegar os caipiras de madrugada. Programa do Nhô Zé, falava: ‘vamo levantá, carçá o botinão, tomá o café reforçado e vamo trabaiá!’ O galo começava a cantar… Isso é memória também, memória de menino.”

Entrevista com Tião Violeiro, músico e mestre de obra, morador de Taguatinga-DF.

Gravação realizada no Orbis Estúdio, em Vicente Pires-DF, no dia 12 de dezembro de 2019.
Entrevistadores: Domingos de Salvi, Sara de Melo, Daniel Choma e Tati Costa.
Transcrição: Tati Costa. Fotos e editoração: Daniel Choma.

Tião Violeiro nasceu em Patos de Minas-MG no dia 01 de novembro de 1939.

Domingos: O senhor é natural de onde?

Tião: Patos de Minas.

Domingos: Como era lá na infância?

Tião: Na infância é vida de roça. Morar retirado uns cinco quilômetros da cidade. Leiteiro, carregava leite, lá tinha uma fazenda de meu avô. E o que produzia lá às vezes a gente vendia leite para a cidade. Fui leiteiro, trabalhava na roça, na lavoura. Puxador de cavalo na carpideira, carpindo [Risos] De menino a gente foi crescendo e foi pro cabo da enxada. Foi pro rabo do arado. Fiz de tudo… Até os quinze, dezesseis anos. Aí fui pra cidade. Larguei lá, fui pra cidade, fui trabalhar em charqueado, não é nem frigorífico, é charqueado, que matava pra fazer o charque. Exportava pra Paraíba, pra Rio Grande do Norte, pra toda parte. Aqueles [caminhões] Fenemê 55, custava a andar, nem a noventa por hora, andava igual um trator. Mas é isso aí. Minha vida foi lá matando boi. Meu irmão era matador, era ajudante. Fiz de tudo, depois ia pro varal secar a carne, mandar pra embalar pra mandar pra fora, pra outros Estados. Então a vida foi… Depois vim pra Brasília, depois casei, passou isso aí, trabalhei em outras coisas, terraplanagem. Mas no meu tempo de criança também que você perguntou, porque naquele tempo do começo tinha as Folias de Reis. Você sabe que lá foi constatado que é o lugar que tem mais Folias de Reis. Nesse tempo não tinha, no meu tempo de menino, que eu cantava, já tocava um cavaquinho. E daí pra cá tinha as Folias, fui folião até mais ou menos dezenove anos. Depois saí de Patos, fui pra outra cidade, trabalhar fora. E aí casei com vinte anos de idade, antes dos vinte.

Domingos: Na família do senhor, os seus pais, tinha alguém que já tinha envolvimento com música?

Tião: Com música meus tios. Meu avô veio do estado do Rio [de Janeiro] trazendo uma viola, ele era papa-goiaba. Minha avó era portuguesa. Até trazendo uma viola que hoje todo mundo na entrevista eles falam dessa viola… A viola é portuguesa. Isso aí todo mundo que faz entrevista sabe, o Roberto Corrêa está cansado de falar isso. Toquei com Roberto Corrêa também, falando nisso. Reis Moura, fui dupla com Reis Moura. Mas aí meu avô trouxe esse instrumento e batia mais ou menos, mas ele praticamente vivia só… Era uma viola de doze cordas. E nós tinha era violão e viola. Era violão de seis cordas e acordeom. E aí meus tios na lavoura, na safra vendiam pra comprar instrumento. Comprou um casal de viola da [marca] Del Vechio… Aí a gente tocava, como só tocava no violão, eu tinha meus doze anos, treze, tocava no violão e afinava a viola de violão. Perdemos um tempão! Aí até vir pra Brasília eu não tocava viola, só se fosse afinada de violão e só batendo. Se fosse pra tocar… Aqui eu comecei uma vida dura, cheguei na época da revolução e não tinha tempo pra mexer com instrumento, passei muito tempo. Aí foi que eu comecei de novo a tocar e estou aí até hoje. Mexendo, mas o instrumento é o seguinte, você passa tempo sem instrumento, mas se você acostumar com ele aí você não fica sem ele. Embora as habilidades vão acabando, mas… [Risos]

Domingos: Como era Brasília na época que o senhor chegou?

Tião: Brasília na época que eu cheguei era muito boa. Muito boa assim, pra você trabalhar, porque lá em Minas Gerais, eu trabalhando aqui o meu salário dobrou e de ajudante. Por aqui, buscando cascalho por aqui pra fazer aquele primeiro posto que era posto da Petrobrás, na saída de Taguatinga ao Plano Piloto. Em [19]64 no início do ano eu trabalhava, pegava cascalho aqui, por isso que eu falo pra você que eu conheço isso aqui, essa parte aqui [refere-se à região de Vicente Pires, onde foi realizada a entrevista]. Então daí pra cá… Aí entrou a revolução, assim que eu cheguei, uma baderna danada e tal. Mas eu não fiquei sem trabalhar, porque trabalhava como [ajudante de soldador], na época, ficava trancado dentro do galpão lá trabalhando. Mas aí logo veio a ditadura, a lei seca. Mas a gente trabalhava assim mesmo, era muito difícil. Aí eu já estava trabalhando na obra, às vezes procurava emprego por causa da ditadura, aquele negócio, aquela bagunça deles, não achava serviço, não há vaga, todo lado. E a gente sempre se virando. Furei cisterna [Risos] Fazendo vala na rua quando era pra por água, porque aqui era novo. Aqui nas QNG. Então a vida foi desse jeito, não é? E aí fechou negócio de entrega de lote, pra ganhar lote, o povo invadir e eu não ia invadir. Aí ficou esses vinte anos sem loteamento. Depois de vinte anos foi lotear, aí foi que eu fui conseguir comprar o meu devagar e tal. Mas a vida foi muito dura. Hoje não, hoje graças a Deus os filhos casou, está tudo, graças a Deus bem. Na medida, ninguém ficou rico mas… [Risos]

Domingos: Brasília mudou muito de lá pra cá?

Tião: Nossa, mudou demais. E eu até que quando cheguei aqui escrevi, como diz, uma moda, que eu cheguei a falar: “é aqui que eu tenho vivido, desse lugar escolhido eu não saio nunca mais.” Achei bom, está lá escrito, eu nem musiquei nem nada. Isso tem muitos anos. Mas aí dá vontade de sair. Dá vontade de sair porque não é mais o que era. As pessoas, o lugar é bom, as pessoas que vão chegando, vai impondo os costumes deles, o jeito deles. Porque a gente que tem consciência das coisas não gosta de ver nada mal feito. Mas graças a Deus que lá no canto que eu moro ainda, que é de frente com o SESI, chega no SESI é pro outro lado, perto da reserva, é bom. Lago do Cortado, parece que eles falam lá. Mas foi ali aquele tempo todo aqui, passei a vida aqui e depois a gente vai melhorando, Deus vai abençoando. Mas agora está bem, graças a Deus. Quando está bem pra um lado a saúde vai pifando… [Risos] Falar igual o Zé Mulato, uma vez lá naquele restaurante Chão nativo. Chegou lá, tinha tanta coisa, leitoa, tudo… “- A gente quando podia comer não tinha. Agora como não pode, tem e nós não pode comer.” [Risos] Ele é engraçado! Então é isso aí, a vida foi isso aí.

Daniel: Como era Vicente Pires, que o senhor estava comentando?

Tião: Vicente Pires aqui era chácara, tinha chácara. Nós estamos na rua 8, tem uma separação que era um córguinho, uma vala que descia assim. Pra cá e pra lá parece que é, não sei, tem Samambaia, núcleo rural de Samambaia, mas aqui era tudo pasto, tudo, tudo, tudo. Tem pouco tempo que começou. O pessoal chacareiro, mas era tudo pasto aqui. Os carroceiros traziam os cavalos pra pôr aqui. Puxava feira, essas coisas, daqui até lá embaixo. Era tudo pasto.

Domingos: Pessoal comenta que em Taguatinga havia muito barraco… Como era, na época do senhor, era assim?

Tião: É. Mas quando eu cheguei aqui, pra você ver, quando eu cheguei aqui pra Taguatinga em [19]64 e eu vinha trabalhar, morava no ponto final que era da comercial norte. Eu ia pra lá às vezes de pé e passava, tinha muito barraco. Onde era o antigo Bar Estrela, lá na praça do relógio, do lado debaixo, na esquina, o referencial do povo aqui era o Bar Estrela. Parava todo mundo lá, o ônibus. E ali tinha um serviço de alto-falante na rua, era tudo de tábua. Benedito Domingos tinha a vidraçaria dele do outro lado, de tábua. Foi na época que eu construí lá na saída aquele posto, eu ajudei a construir. Então tinha serviço de alto-falante, pra você ver. Naquela época, 64, eu saía do serviço aí já tinha uma bicicletinha. Aí eu estava subindo de pé. Mais ou menos tipo seis horas, quem chega lá? Num circo de Cascatinha e Inhana, Circo Transcontinental. Perto da praça do relógio, perto da igreja, parece que é Sagrada Família. Aí chega o Roberto Carlos no cadillac dele. Roberto Carlos! Quer dizer, era pobre, ele estava vindo cantar no circo. Aí eu falo, se eu falar uma coisa dessas só se for no pé do ouvido dele, falar: “você lembra?” Era a época do “O Calhambeque”. Mas tinha pouca menina, tinha poucas moças, mas já tinha mais ou menos umas vinte. Aqui era muito escasso de moça na época. Mulher, a gente novo, mas já tinha ali naquela parte, já começaram assim a ir pra cima dele. Aí o ajudante dele, o segurança falou: “ô rapaz, dá uma mão aqui, fazer um cordão de isolamento.” Aí nós fez. Porque ele tem uma perna mecânica, eu nem sabia. Aí aconteceu isso. Já pensou? Hoje em dia se falar… Poxa, mas se eu encontrasse hoje em dia eu falava, não é não? Porque ele além de tudo é humilde, o tipo dele. Aí aconteceu essas coisas… Mas aí foi só subindo. Foi só aumentando de gente, construindo, trabalhei muito tempo em construção aqui.

Domingos: E tinha muitas duplas de viola nos circos?

Tião: Nos circos? Bom, no circo ia muitas duplas. Naquela época ia Silveira e Barrinha, Silveira e Silverinha, Praião e Prainha, que morreram novo. E vinham muitos, só Tião Carreiro que eu nunca vi por aqui. Eu nunca vi ele assim. Mas tinha muita dupla. Tinha também aquelas pessoas que vinham às vezes do Rio de Janeiro fazendo show nas praças. E as mulheres cantando e dançando, Linda Batista e mais algumas da época dela. Então tinha tudo isso na época.

Domingos: Quais eram os lugares que os circos ficavam aqui em Brasília?

Tião: Eles ficavam ali onde eu estou te falando, naquela praça. É o lugar mais de movimento que ficou um circo ali, naquela época, perto da Praça do Relógio, mas depois da praça indo pra cima perto de uma igreja. Esse foi o do Cascatinha e Inhna. E depois cá em cima na praça do Mercado Norte. Ali na praça do Mercado Norte eu fui feirante, não falei pra você, eu fui feirante também. Fui feirante de [19]65 a 67. Na praça do Mercado Norte ali, a feira era de frente, depois passou para os fundos. Ali naquela praça quando vinha, tinha ciganos também que acampavam ali. Quando não era circo era cigano. Ali era cheio, tinha parque, o parque do vira-vira. Cantamos no parque do vira-vira, subimos pra cantar lá em cima. Então aí tinha ciganos. Eu pude ver um casamento cigano, a semana inteira festejando! [Risos] A semana inteira o casamento. Então teve muita coisa aqui, rapaz!

Domingos: O senhor trabalhou em alguma construção também no Plano Piloto?

Tião: Trabalhei. No Plano Piloto eu trabalhei muito. Hoje minha filha mora num prédio lá que eu ajudei a construir, aqui na 202. E trabalhei pra muitas firmas. Tinha muitas firmas antigamente. Ribeiro Franco, Rabello, tinha muitas firmas [Construtoras], demais. Hoje que não tem, mas tinha demais da conta. Trabalhei na construção. Trabalhava na época da lei seca, ia pra rodoviária. Em [19]68 eles puseram um tacho de cobre lá escrito “ouro para o bem do Brasil” pessoas que quisessem tirava a aliança e botava lá. Teve isso aí também!

Domingos: E as pessoas colocavam?

Tião: Colocavam. Eu olhava lá, falava: “é, o meu não vai não, minha aliancinha nunca!” E aí a gente via, as pessoas colocavam. Mas hoje eu fico pensando, o pessoal era, como que se diz, militar. Era dos militares que mandavam, mas uma coisa a gente pensa, eles não roubavam, não é? Você já pensou? Eles não, eu acho que eles ganhavam o dinheiro deles e viviam com o dinheiro. E hoje você vê como nosso país está, eu lembro daquilo.

Domingos: O senhor lembra da vila Amaury?

Tião: Vila Amaury… Eu lembro da Vila Tenório lá no Bandeirante, a placa da Mercedes que eles falavam. Placa da Mercedes, mas era o lugar… E lembro da invasão do IAPI. A Vila Amaury acho que era por ali mesmo… Tem a Vila Planalto, é, Vila Amaury acho que foi por ali mesmo porque lá tinha a Vila Tenório, outras vilas. E tinha essa que eu falei que era lá da placa da Mercedes, também tinha. Tinha a Metropolitana, Cidade Metropolitana lá, Bandeirante, e a Vila Amaury. Eu sei que o Zé Mulato saiu da Vila Planalto, foi morar lá na QNL… Os pais dele na época foram pra lá. Tinha a Vila Amaury mesmo, eu não me lembro, situada, se era perto da estação de trem ali, perto do Bandeirantes.

Domingos: E nesse período quando o senhor chegou havia violeiros aqui em Brasília?

Tião: Violeiro, violeiro mesmo não. Tinha… Eu não sei se o Campinol, que faleceu há pouco tempo, ele fazia o programa “Ranchinho de palha.” Propaganda do Café do sítio. Então ele era, tocava, em [19]66 já tinha ele. E tinha outros aí, o Zé Mulato começou também. O Zé Mulato tocava na afinação Rio abaixo. Você já entrevistou ele? [Risos] Tá certo! Então tinha, mas era pouco. Era pouco. Tinha uns que quando eu cheguei aqui tinha o Toninho e Tonhão, parece, não sei. E aí parece que eles eram de Belo Horizonte. Mas sempre teve, aqui depois, na época de [19]65, 66 tinha muito esse pessoal de Goiânia. Eu aprendi polca foi com eles. Eles perto do Mato Grosso, por ali, tinha uns caras que tocavam. Trio da Vitória, Sinval e Dalmir, Os filhos de Goiás. Eu gosto daquele estilo deles. Então eu era mais daquele estilo, eu não era violeiro. Eu não era, vim pegar a viola depois. Eu gostava do estilão da polca, chamamé, tudo isso. (Continua…)