Donzílio Luiz

“Cantina de Zé Nicolau, primeiro ponto de cantoria de Brasília. Isso não é dito por mim, é por todos que conhecem da história. Primeiro ponto de cantoria de Brasília: cantina de Zé Nicolau. Sabe onde ficava? Nem vai saber nunca mais. Não vai conhecer nunca mais, porque não existe mais: Vila Amaury, que o Lago Paranoá cobriu.”

Entrevista com o repentista e escritor Donzílio Luiz de Oliveira, morador de Ceilândia-DF.

Encontro realizado na Casa do Cantador, Ceilândia-DF, dia 12 de fevereiro de 2018.
Entrevistadores: Domingos de Salvi, Sara de Melo, Daniel Choma e Tati Costa.
Transcrição: Tati Costa. Fotos e editoração: Daniel Choma.

Donzílio Luiz de Oliveira, nasceu em Itapetim-PE, dia 05 de agosto de 1933.


Domingos
:  O senhor é natural de onde?

DonzílioNatural da cidade de Itapetim, no Pernambuco. Itapetim é uma cidadezinha de aproximadamente vinte mil habitantes, é bem pequenininha. Mas eu gosto de dizer que ela é a capital do meu mundo. Foi ali que eu nasci, foi ali que eu me criei, foi ali que eu aprendi a viver da arte… É tudo.

Domingos:  Como era lá, na sua infância?

DonzílioMuito gostoso, eu trabalhei muito na roça, na zona rural. Criado na zona rural mexendo com lavoura, com os animais. Muito divertido, mas muito sofrido também… Teve de tudo. Até os dezoito anos eu fiquei mais nessa vida assim, na lavoura.

Domingos:  Tinha cantadores lá?

DonzílioTinha, tinha. Os primeiros cantadores que eu assisti cantando foram Pedro Amorim, Pedro Vieira de Amorim e João Severo de Lima. Dupla muito boa, muito famosa, muito requisitada. Na casa dos meus pais eles fizeram uma [apresentação]… Eu acho que deve ter chegado a uma centena de noitadas de Cantoria lá em casa. Eu assisti a todas e aprendi a gostar e a executar.

Domingos:  Na família do senhor já existiam cantadores?

DonzílioTinha um mais velho do que eu que ainda é vivo, está com 92 anos. Foi cantador, mas durante uns cinco, seis anos. Depois ele casou e foi cuidar da família. Largou a viola, ficou fazendo só um final de semana aqui e ali, depois parou completamente. Os outros escrevem uma coisinha, escrevem Literatura de Cordel, essas coisas, alguns versos… Mas cantar mesmo, ficou só eu.

Domingos Na infância o senhor tinha contato com o Cordel?

DonzílioTinha. Tinha o Cordel desde a minha infância. O Cordel era a cartilha do alfabetizado. A gente, quando aprendia a ler falava alfabetizar. Você se desenvolvia na leitura, tudo vinha do Cordel. Se não fosse o Cordel, o que seria de nós naquela época? Aprendi a desenvolver a leitura, começava a ler soletrando, depois gaguejando e depois com a prática passava a ler corretamente e com mais rapidez. É o Cordel. Cheguei a cantar muitos cordéis, memorizava um Cordel de 130 estrofes. Às vezes 32 páginas, 130 estrofes… Memorizava todinho pra cantar nas noites de Cantoria. Cantava uma parte de improviso, aí o pessoal gostava muito de pedir, canta aí um… Chamava de “romance”. Romance de Cordel. Na verdade, quando é muito longo é romance. Um pouquinho mais curtinho, é um conto. Mas história longa é romance. Então eles chamavam aquele livro… Que o cordelzinho era confeccionado em 8 páginas, 16 páginas e 32 páginas. O de 32 páginas era chamado de romance porque era muito longo. Então a plateia pedia: “Canta romance?” “Canto.”
“Canta aí um pra gente.” A gente começava, aquilo ali levava duas horas. Parava um pouco, tomava uma água, continuava… Preenchia a noite de Cantoria cantando romance também. Muito bom!

Domingos:  E o seu primeiro contato com a viola, como foi?

DonzílioCom a viola, foi o seguinte. Um desses cantadores de quem eu falei, era Pedro Vieira de Amorim. O Pedro Amorim, eu tinha ele como um tio… Ele dizia: “Donzílio, compra uma viola, você vai ser um cantador”. Eu chegava na Cantoria deles – eles sabiam que eu rimava uma coisinha. “Donzílio, canta aqui um pouquinho”. “Não!” Aquele acanhamento. “Não, não. Vou nada, não sei cantar não”. “Sabe, sabe…”. Até que eu pegava a viola e cantava um pouquinho. O outro gostava e dizia: “Não te falei? Ele é bom. Compra a viola!” Aí eu comprei a viola em 1958, eu já aos vinte e cinco anos, vinte e quatro para vinte e cinco anos. Eu comprei a viola e comecei a cantar.

Domingos:  O senhor lembra de quem o senhor comprou a viola?

DonzílioEu comprei na casa… Naquele tempo eles chamavam violãozinho paulista. As violas que tinham lá eram fabricadas ali mesmo, aquela fabricação artesanal. As cravelhas eram de madeira, eles chamavam cravelha de pau. Era tudo de madeira. Aquelas violinhas fabricadas lá mesmo, artesanalmente. Nas lojas tinha um violãozinho que vinha de São Paulo, a gente chamava violão paulista, porque vinha de São Paulo. Aí eu comprei um violãozinho daqueles, “paulista”. O violão são seis cordas, mas a gente fazia uma adaptação. Furava um buraco aqui, colocava mais uma cravelha de madeira e botava mais uma corda pra completar as sete. Foi assim que eu fiz minha primeira viola.

Domingos:  A viola do Repente tem sete cordas?

DonzílioÉ. Tem sete cordas. A gente faz uma adaptação pra sete cordas.

Domingos:  E como aprendeu a fazer versos improvisados?

DonzílioAprendi a fazer verso de improviso catando algodão na roça. Brincando com meus irmãos de fazer versos, improvisar, cantando, brincando, brincando, brincando, brincando… Uma vez eu cheguei da roça e meu irmão – que eu te falei que ele já foi cantador, ele é bem mais velho do que eu, uns oito anos mais velho do que eu. Eu cheguei umas cinco horas da roça, cheguei em casa ele estava com um colega dele. Parceria lá no Nordeste, a gente chama colega. O meu colega é o meu parceiro, fala assim lá no Nordeste. E ele estava com o colega dele preparando a viola, afinando as violas, fazendo um versinho que a gente chamava “levantar o pensamento”, ver como é que está a garganta. O treinamento de garganta, treinamento da ideia, para à noite se apresentar numa Cantoria lá. Cheguei, eles estavam os dois lá cantando. Quando cheguei, eu vinha da roça com um feixe de palha de milho na cabeça. Joguei abaixo, me debrucei na janela , eles ficaram olhando de lá. Aí meu irmão disse pra o parceiro dele, que era Jó Patriota: “Donzílio canta Repente”. “Canta?” “Canta.” “Traz ele aqui”. Aí eles começaram aquela luta novamente, aquela peleja, pra eu aceitar. Eu disse “não vou, não vou cantar não, que conversa, cantar logo com um profissional, não tem jeito”. Pelejaram tanto até que eu sentei. Quando sentei… Eu me lembro o primeiro verso que eu fiz profissionalmente. É, ao lado de um cantador profissional, cantando pra valer, a primeira estrofe que eu fiz. E ele disse olhando pro meu chapéu, que era um chapeuzinho daqueles de massa, chapéu tipo Cury, Prada. Vocês lembram daqueles chapéus? Chamam “chapéu de massa”, mas era bem velhinho já. Trabalhando na roça, botando peso em cima achatou, furou-se, rasgou-se, acabou aquela fita, as fitinhas que tem, o suadouro, estava todo estragadinho o chapéu. Aí foi quando ele disse: “parece que o teu chapéu é o mais velho do mundo”. Ele se referiu, fez uma referência a meu chapéu. “Parece que o teu chapéu é o mais velho do mundo”. Aí eu disse: “não tem aba, não tem fundo, nem fita, nem suador”. Que na verdade é suadouro, mas naquele tempo a gente não fazia essa diferença de suador ou suadouro. Aí eu disse:

Não tem aba, não tem fundo
Nem fita, nem suador
Ninguém sabe de quem é
Muito menos de que cor
Nem o chapéu presta mais
Nem quem usa tem valor.

É porque derruba, né? Ele deu uma risada, meu irmão deu outra risada… Aí pegaram um papel e escreveram assim meu primeiro verso cantando pra valer. É. 1958. Faz uma eternidade, não é? Quarenta e dois com dezoito vai dar o quê? Sessenta anos. Está fazendo sessenta anos que isso aconteceu. Daí pra diante ele disse: “está pronto, pode começar a cantar. Vamos com a gente lá pra Cantoria!” Troquei de roupa e fui com eles. Aí eles foram cantar, eu fiquei revezando um pouquinho com um e com outro… Comecei a cantar.

Domingos:  Era importante a Cantoria naquela época?

DonzílioEra muito importante, muito importante. A principal importância você sabe que é a renda. Era a renda. Mas a gente achava aquilo o menos importante naquela época. Importante ali era o aplauso da plateia. O povo era muito afeito a assistir Cantorias, eles gostavam… Tinham loucura, loucura daquilo. Mesmo porque era uma diversão una. Quase que só tinha aquilo naquela época, entendeu? Não tinham tantas opções como tem hoje. Hoje você vê: um show como foi esse ontem, isso aí era pra ter cem pessoas, duzentas, tinha meia dúzia de gatos pingados. Por que? Carnaval para um lado, cinema pra outro… Futebol, televisão em casa, computador, o zap… Não é? São dezenas de opções. Aí quando a pessoa vem optar por assistir um Repente chega bem pouquinha gente, não é? É diferente. Mas naquele tempo não. Naquele tempo bastava dizer: “vai haver uma Cantoria no próximo sábado…” Que desde o começo sempre é no final de semana – que o povo é muito ocupado com o trabalho durante segunda a sexta e não tem tempo, quando chega em casa já está muito fadado, vai tomar banho, jantar e dormir. Então dia de sábado, que é final de semana, que o povo está com mais liberdade para as diversões, é sempre dia de sábado. Quando o povo ouvia falar, no próximo sábado vai haver uma Cantoria na casa de fulano de tal, sítio tal, fazenda tal… Eles nem perguntavam quem eram os cantadores não. Eles já iam era todo mundo – duzentas, trezentas pessoas. A casa não cabia! Colocavam uma mesa grande… Improvisavam um palco pro lado de fora da casa numa mesa grande – que naquelas mesas de fazenda dá pra colocar duas cadeiras em cima pros cantadores ainda sobra espaço. E no pátio da fazenda – a gente chama de terreiro… Lá no terreiro eram bancos de aroeira. Colocavam assim, enchia de gente. Ficava cheio, cheio, cheio. Faziam uma fogueira lá no final do terreiro pra dar uma claridade, ajudar a lua! [Risos.] Pra espantar os mosquitos. Aí, haja Cantoria!

Haja Cantoria e era a noite toda… A gente começavas às sete pra oito horas da noite, só parava quando o sol vinha saindo. Era a noite toda, as Cantorias daquela época. Era muito gostoso e o povo gostava e aplaudia, pedia um assunto, pedia outro. Como o Valdenor [de Almeida] falou ontem, o povo pedia o mote em sete (sete sílabas), o mote em dez (que é dez sílabas), pedia um gênero de Cantoria, também chamado de modalidade. Pedia o quadrão, pedia mourão, pedia martelo, pedia galope à beira-mar e por aí afora… E a gente saía cantando era a noite toda. Toda, toda. Às vezes eles pediam um romance: “Quem de vocês canta romance?” “Eu canto.”  Aí canta um romance. Aí o outro [cantador] ia descansar bastante, ficava uma hora descansando. Quando a gente terminava, “agora é sua vez”. Ele ia cantar enquanto um ficava descansando também. Uma hora de descanso. Aí o dono da casa dava uma paradinha: “agora para todo mundo! Vamos fazer um lanche.” Aí levava todo mundo lá pra cozinha… Que o lugar mais alegre da casa é sempre a cozinha, não é? Ia todo mundo lá pra cozinha fazer um lanche. O que eram os lanches naquele tempo? Um café, um leite, uma coalhada, que é coisa da roça. Porque nada vinha da padaria. Não tinha nada, nada, nada que viesse da padaria. Era tudo dali. Um beijuzinho de polvilho, que lá eles chamam tapioca. Aqui a gente chama tapioca é com a massa. E bolo de caco… Sabe o que é bolo de caco? Você faz assim. Bolo de caco é bolo de milho, porque ele é assado no caco de barro, numa tigelinha de barro. Eles fazem uma espécie de massa do milho com leite, mistura… Faz aquela massa espessa e aí coloca no caco. Depois vira, vira, vira… Chama “bolo de caco”. Muito gostoso, muito gostoso. Então esse era o lanche. Fazia todo mundo o lanche, dava um intervalo de uns vinte, trinta minutos… Voltava e pegava viola novamente. E haja Cantoria até o sol sair! Era sempre assim, muito gostoso.  (Continua…)