Valdenor de Almeida

“A nossa cultura é a nossa identidade, é a nossa raiz.
Se você perder sua identidade, você não é ninguém.
A planta, se perder a raiz… Morre o resto.”

Entrevista com o repentista e professor Valdenor de Almeida Araújo, morador de Brasília-DF.

Encontro realizado na Casa do Cantador, em Ceilândia-DF, dia 11 de fevereiro de 2018.
Entrevistadores: Domingos de Salvi, Sara de Melo, Daniel Choma e Tati Costa.
Transcrição: Tati Costa. Fotos e editoração: Daniel Choma.

Valdenor de Almeida nasceu em Pombal-PB, em 29 de maio de 1964.


Domingos
O senhor é natural de onde?

Valdenor:  Eu sou de Pombal, na Paraíba. Contato com viola, eu comecei logo desde menino. Mas cantar mesmo eu comecei a partir dos dezoito anos. A gente começou a cantar brincando com o colega e aí a gente foi levando a coisa mais a sério. Até que começou a participar de programas de rádio, nos programas de colegas… Depois a gente colocou um programa nosso e começou a fazer Cantoria. Aí a coisa foi fluindo automaticamente, a gente começa e vai automático. A gente chega a se profissionalizar.

Domingos:  E logo na infância o senhor já assistia cantadores?

Valdenor:  Lembro a primeira Cantoria que assisti, no rádio, a gente já ouvia nesse tempo. Tinha programas de rádio e a gente sempre escutava. E aos oito anos de idade eu tive contato visual com a primeira Cantoria. Era um cantador que surgiu lá cantando sozinho, até fora dos padrões da Cantoria, que é feita em dupla. Depois começaram a virem mais outras e outras e a gente já gostava, pois é uma coisa que é passada de geração pra geração no Nordeste. Principalmente aquelas épocas de setenta e poucos pra oitenta. Depois disso onde tinha uma Cantoria a gente ia assistir, qualquer distância.

Domingos:  Na sua família já havia cantadores?

Valdenor:  Não, não, eu sou o primeiro repentista na minha família. Não tem nenhum outro. Tem um irmão meu que brinca às vezes com a gente, mas nunca se profissionalizou.

Domingos:  E por que você acha que foi pra Cantoria?

Valdenor:  A gente vai quase que automaticamente, mas eu fui muito incentivado por um colega. O colega que iniciou cantando comigo comprou uma viola e brincava só em casa mesmo. E eu cantava brincando com ele sem viola, sem nada, até que ele me incentivou pra comprar uma viola pra gente brincar. Até então eu comprei no pensamento só de a gente continuar brincando por ali. Mas quando a gente começou, afinou as violas e arrumou, um amigo da gente organizou uma Cantoria e chamou pra gente fazer, que foi a nossa primeira Cantoria. A gente tinha participado uma vez numa Cantoria de dois cantadores, foram cantar lá e a gente fez uma participaçãozinha. Mas aí, essa, ele foi organizar pra gente. Então nós fizemos a primeira Cantoria, muita gente. A gente se empolgou bastante e foram surgindo outras e quem estava na Cantoria chamou pra fazer outra… Depois surgiu mais outra e a gente foi tocando em frente. Sem querer caiu dentro da profissão e continuou.

Domingos Foi difícil o aprendizado, aprender a cantar as métricas e fazer o ponteado na viola?

Valdenor:  A maior parte dos cantadores começa cantando pouco mesmo. Então, às vezes, no início a gente ainda errando, fazendo rimas erradas… Mas com o tempo a gente foi se aperfeiçoando. A questão de rima e métrica, ela parece quando conta que uma sextilha, por exemplo, a gente tem que fazer seis versos e as rimas tem que ser colocadas na segunda, na quarta e na sexta linha. E cada verso dessa sextilha tem que ter sete sílabas. Quem não tem contato com a Cantoria acha que o difícil é isso, mas não é. A questão da rima e a métrica a gente já tem automático. A métrica, o próprio ritmo da Cantoria vai ditando a métrica. O difícil é a gente “colocar oração” como a gente chama, que é o conteúdo da coisa. A gente pode cantar rimando e metrificando, mas sem dizer nada, sem criatividade. Igual uma redação que você faz. Um professor pede uma redação, dá um tema e pede uma redação com vinte, trinta linhas. A pessoa faz a redação, mas não tem conteúdo. Então o mais difícil acaba se tornando o conteúdo que a gente tem que colocar, porque a gente nunca está satisfeito. Se você acerta, você quer acertar mais… O difícil é isso.

Domingos:  E como foi o aprendizado da viola?

Valdenor:  A viola, a gente até hoje ainda está aprendendo! Pra cantar Repente a viola não exige muito, porque é praticamente uma nota. Você pega um Lá Maior, pronto, o Repente é só isso aqui. O restante você faz mais é um “pinicadozinho”, um enfeitezinho a mais no baião, mas é isso aqui [Toca na viola dinâmica.] Então não é tão difícil, com o tempo você vai aprendendo. Agora, as notas mais aperfeiçoadas, você precisa quando passa a cantar canções. Porque a Cantoria, o principal é o Repente mesmo. Mas a gente [também] canta músicas que são chamadas de canções, escritas pelos próprios cantadores. E tem as declamações. Então a nossa Cantoria, ela tem esses três componentes: a gente usa declamações dos poemas escritos, só declamados; o Repente, que é o principal; e as canções, essas exigem toque igual a um violão, uma viola caipira. Mas aí também não são muitos especialistas em canções… Uma pequena parte da Cantoria é essa.

Domingos:  O senhor poderia mostrar um pouquinho desse baião de viola que vocês repentistas fazem?

Valdenor:  [Toca baião na viola dinâmica.] Cantar Repente é praticamente isso aqui. Então não é uma coisa difícil de tocar viola. Muitos cantadores, dos grandes cantadores, principalmente os mais antigos que tocavam… Até tocavam o baião, [mas] não era uma coisa muito exigente. Os da nova geração, hoje, tem um baião mais ritmado. Eles procuram sincronizar os baiões. A gente, há quatro, cinco décadas… Primeiro que as violas, muitas delas eram de cravelhas ainda, então afinava muito ruim. E tocavam um baião desencontrado com o outro. Hoje, a maior parte dos cantadores, está tocando os baiões. Você não sente que tem duas violas, é como se fosse só uma dentro da outra. Antes não, você tocava pra cima, pra baixo, enquanto um estava subindo, outro estava descendo. Hoje eles se cuidam mais nessa parte de toques de viola, as violas são mais aperfeiçoadas.

Domingos:  Essa viola repentista, ela é diferente da viola caipira?

Valdenor:  É. Em si, a viola é a própria. Tem esses tipos aqui… [Aponta para viola dinâmica.] Esse tipo de viola aqui chama viola dinâmica, com essas bocas. Aqui tem um disco de alumínio bem fininho dentro disso aqui, que é quem dá esse som mais abafado. Mas muitos cantadores cantam com viola simples. É a mesma viola caipira que os caipiras usam, só que a afinação, o encordoamento, é diferente. De cima pra baixo, a gente usa uma Mi, uma… Vamos numerar pelas cordas do violão mesmo, uma primeira, depois vem uma terceira do violão e uma sexta do bordão do violão. As três funcionam como se fosse uma só. A gente coloca pertinho uma da outra, elas são afinadas num tom só. Aí depois vem uma quinta e pra baixo três primeiras. Só que afinadas em afinações… Mas a nota, dá a mesma de um violão. Apesar de ser uma outra afinação, a nota é a mesma do violão. Tanto que no acompanhamento de muitas canções, um toca em viola o outro em violão. E fica o som perfeito, se é afinado na mesma altura.

Domingos:  E o que lhe serve de inspiração quando está cantando?

Valdenor:  Olha, pra servir de inspiração… É o público. O público é uma… Porque a gente canta fazendo tudo de improviso. [Também] depende do dia que a gente está e depende muito de emoção. Se você tem mais emoção você cria mais. Então, quando a gente tem a interação entre a plateia e a gente, a gente sente. Você canta pra uma plateia maior, que está participando, aplaudindo a cada final de verso, você sente o retorno daquela energia que vai. E o que a gente cria, quem determina são os outros. Por exemplo, nos festivais, a gente não canta o que a gente quer, você vai depender do tema que vai cantar. A inspiração vai depender do momento seu, que tem dia que o cantador encontra mais fácil as palavras, as frases pra colocar. E a participação da plateia ajuda muito. Quando você participa de um festival, ou mesmo numa Cantoria, pra que você faça uma boa apresentação, o tema é muito importante. Porque às vezes cai um tema num festival muito difícil, muito ruim de cantar. Às vezes o tema é bom, mas não tem muito o que você criar dentro dele. Então o tema ajuda muito a você criar, e a participação do povo também é muito importante.

Domingos:  O senhor poderia dar um exemplo pra gente de uma sextilha?

Valdenor:  Você quer que cante ou que…

Domingos:  É, cantando…

ValdenorEntão vamos pegar sextilhas que já foram cantadas, fica mais fácil porque ela sai perfeita. Pra gente criar, pode não sair. Uma sextilha que inclusive está num DVD da gente. A gente lançou um DVD, “Grandes momentos de festivais” que foram participações minhas e de João Santana em três festivais aqui da Casa [Casa do Cantador], que a gente participou de sete festivais, ganhou seis. Na Casa aqui, os seis que a gente participou a gente ganhou. Então em 2014 a gente pegou aqui um tema pra sextilha: “o mundo que eu quero ver”. Então foi o tema que a gente pegou nas sextilhas. Deixe-me ver se eu lembro de uma estrofe, que João terminou uma sextilha dizendo… Acho que os países, uma coisa assim. E eu disse:

[Toca na viola dinâmica e canta versos de sua autoria:]

Que o mundo dos infelizes

Tenham paz interior.
Onde o valor do salário

Que é pago a um jogador.
Não seja cem vezes mais

Do que ganha um professor.

ValdenorEssa é a sextilha. Nos festivais é lançado o tema, como esse, e a gente tem cinco minutos. O tanto de estrofes que der pra fazer dentro desses cinco minutos, a gente tem que obedecer a essa regra. As sextilhas, seis versos em cada estrofe, as rimas têm que ser: a segunda com a quarta e com a sexta tem que rimar. A primeira a gente tem que rimar com a última que o colega deixou. Chama “pegar na deixa.” Antigamente se cantava fora da deixa, não se usava. Hoje é obrigatório pegar na deixa do outro. Então, a gente já monta pensando no que o outro está terminando. E aí vêm os motes e vêm os outros gêneros de Cantoria. Geralmente, nos festivais, inicia-se com uma sextilha… Tem um mote em sete sílabas, que aí o tamanho de cada verso é o mesmo, sete sílabas, igual à sextilha, só que aí a estrofe é montada com dez versos. E aí não tem rima solta, porque na sextilha tem a terceira e a quinta você pode colocar o que você quiser. O mote não, você tem que colocar a primeira com a quarta e a quinta, a segunda com a terceira; a sexta e a sétima você já faz pensando no mote final e a oitava já com a nona. O mote, por exemplo… Um mote que tem num CD da dupla Os Nonatos: “a mídia mostra e obriga, o povo vê e aceita.” Com seus cinco minutos você tem que em toda estrofe terminar dizendo isso: “a mídia mostra e obriga, o povo vê e aceita.” Uma estrofe em que ele diz isso é:

O povo vendo novela

Apaga o filme da fome
Calça, veste, bebe e come

Alienado por ela
Nenhum dos produtos dela

O consumidor rejeita
Depois da cabeça feita

A gente esquece a barriga
A mídia mostra e obriga,

O povo vê e aceita.

Domingos:  E quais são os outros gêneros?

Valdenor:  Nos festivais, além do mote em sete tem o mote em dez, que é também uma mesma décima, só que a extensão da estrofe, ao invés de ser com sete sílabas, é com dez, que se chama “o martelo”, porque ele é um mote em dez. Por exemplo, caiu aqui num dos festivais: “Se você não souber, eu lhe ensino / A cantar a cultura universal.” Então é como se fosse um desafio com o outro. É desafio. A Cantoria em si já é um desafio porque a gente tenta se superar a cada estrofe. Então já é um desafio contra a gente mesmo. E alguns temas são desafio contra o colega.  (Continua…)