Zé Moacir

“A memória é a arma fundamental do repentista.”

Entrevista com o repentista José Moacir de Souza (Zé Moacir) morador de Ceilândia-DF.

Encontro realizado na Feira da Guariroba em Ceilândia-DF, dia 14 de maio de 2018.
Entrevistadores: Domingos de Salvi, Sara de Melo, Daniel Choma e Tati Costa.
Transcrição: Tati Costa. Fotos e editoração: Daniel Choma.

Zé Moacir nasceu em Pereiro-CE, dia 16 de junho de 1941.


Domingos
O senhor é natural de onde?

Zé Moacir:  Eu sou natural do Ceará, de uma cidade que fica em cima de uma serra, no Vale Jaguaribano: Pereiro.

Domingos:  Como foi lá na sua infância?

Zé Moacir:  Infância foi… Papai era agricultor, lidava com animais, com gado, trabalhando na roça. É o comum do nordestino, não é? Então minha vida foi essa, aprendi muito novo, cordéis. Nesse tempo a gente não chamava Cordel, a gente tinha o nome de romance, histórias. Aqueles poetas antigos escritores de cordéis… Que hoje é Cordel por causa do movimento criado sobre os feirantes, que vendiam nas feiras aqueles cordéis pendurados num varal. Aí chamavam Cordel, cordão, Cordel. Aí botaram Cordel. Poesia de Cordel… Aí eu aprendi vários romances. Eu cantava trinta e tantos, menino ainda. A primeira Cantoria que fiz como cantador eu tinha quatorze anos. Inesperadamente, fui num animal do meu pai, ele montado na frente e eu na garupa, tão musculoso eu era… Raquítico, fino, mas disposto. Era pra cantar os romances eu fui, quando cheguei lá tinha um cantador de fora, era de Juazeiro do Norte, do Cariri, era o nome e tal, fizeram um assombro. Cantar com ele deu certo. A primeira Cantoria. Depois tive uma pausa, não cantei, passei uns tempos sem cantar e aos dezesseis anos aí peguei definitivo, cantando com os cantadores. Depois viajei, comecei a viajar com vários cantadores: Teixeira de Lima, Louro Branco, Azulão do Norte, Geraldo Amâncio e vários. Programa em rádio eu fiz também vários, em Araripe do Crato, cidade grande do Ceará, grande assim por causa das cidades. Juazeiro do Norte é a maior cidade do interior do Ceará e Crato está parece que em quarto lugar. Muito bom, me acostumei. Quando foi em 1976 aí vim pra Brasília. Gostei daqui o movimento, povo com muito dinheiro…

Nesse tempo a gente cantava muito nas feiras, era apresentar e o povo do Nordeste – aquele pessoal saudoso com a família que tinha ficado lá e outros que estavam com a família aqui mas não escutavam mais Cantoria -, vinha pra cá [pra Feira da Ceilândia-DF], aí era muito animado. Depois deu uma maneirada, mas houve o trabalho da Casa do Cantado em que trabalhamos demais, eu fui um dos enfrentantes pra cantar. Cantei no tempo de José Aparecido, um ótimo governador que foi aqui em Brasília pra cultura, nos recebeu muito bem e deu a força maior. Nesse tempo era Sarney também o presidente, mas antes do Sarney já vinha o começo do trabalho. Cantamos pra o Celso Furtado que era nordestino também, criado no exterior mas nordestino, paraibano. O ministro Celso Furtado assistiu, gostou demais, e com esse pessoal eu cantei dentro da Fenacreps – era o Gonçalo Gonçalves na época. E a gente trabalhou muito, isso a gente deve a ele, trabalhou muito mesmo, enfrentou. Depois o Zé Aparecido se comprometeu e então nós fomos num almoço na casa do governador em Águas Claras. Ele nos recebeu muito bem, foi um [ônibus] de cantadores… Vieram muitos cantadores do Nordeste, era o tempo do festival. Aí fomos a um almoço lá a convite dele, foi muito bom. Daí ele veio à inauguração [da Casa do Cantador], o presidente Sarney na época e Oscar Niemeyer vieram, Celso Furtado e várias autoridades vieram, foi muito prestigiado. Estava superlotada a Casa do Cantador, tinha muita gente, foi muito bom. E assim a gente vive desenvolvendo a nossa cultura. Aparece um convite a gente vai, aparece uma apresentação pelo governo a gente faz, que sempre tem os projetos. O nosso diretor, o Marques, também trabalha muito sobre a cultura, ele é o presidente da Asforró mas acolhe a gente e faz uma inter-relação, intercala. E a gente canta, canta em feira, apresentações assim como esta, nós estamos numa feira, aqui. Já cantei na Rádio Nacional, várias vezes. Ela vem na Feira da Guariroba, feira do PSul… Outros chamam Feira da Guariroba, já sabe que é aqui. Então aquele pessoal que já está na feira aglomera e a gente faz apresentação na Rádio Nacional, na feira. É, ela vem à feira e o Marques tem um programa também do forró nas feiras, é uma coisa muito excelente, e a cultura se expande rapaz. Depois a Casa do Cantador abraçou a música sertaneja também, aí tem apresentações, Zé Mulato mais Cassiano, eles já vieram várias vezes e vários sertanejos cantaram aqui.

Domingos:  As feiras são bons lugares pra fazer Cantoria?

Zé Moacir:  A feira é aglomeração do povo. O povo vem fazer alguma compra… A mulher vai comprar e o marido sempre gosta de tomar uma cervejinha, uma coisa, vai pro ponto que tem o divertimento: é a Cantoria. Aí canta na feira, é muito bom, é tradição dos cantadores, tradição. Aqui teve um tempo que no centro de Ceilândia tinha um caminhão, nesse tempo era o Gilberto Braga. Você é muito novo, não lembra, e é de fora. Lá a gente cantava em cima do caminhão, era o palco. E rapaz, ficava muita gente, muita gente… Muito bom. E assim a gente vai levando o nosso trabalho.

Domingos:  Como era Brasília quando o senhor chegou?

Zé Moacir:  Brasília… Lama, poeira, trabalho pesado, falta de transporte e de estrada. Não tinha… Aqui mesmo quando eu cheguei tinha pouco asfalto, pouquíssimo, era mais a terra compactada. Passava o trator vinha a chuva estragava, atolava ônibus. Os ônibus eram uma Pioneira, a Pioneira saía que era uma tristeza, do Alvorada até Taguatinga. E outro que era assim de gente… Foi muito sofrido aqui, viu? Muito sofrido, mas muito gostoso. O povo não era agitado como hoje em dia, porque naquele tempo o menor obedecia os pais, trabalhava, certo? E não tinha roubalheira. Você podia andar, receber seu pagamento, sabia que ali você ia fazer sua feira, comprar seu necessário, não tinha problema de assalto. Não tinha nessa época, foi um tempo bom. Sofrido, mas ótimo. Igualmente o que a gente viveu no lugarejo de roças, longe da cidade, sem carro, com animal, mas era gostoso.

Domingos:  Nós estamos aqui em Celiândia. O senhor pode falar um pouquinho sobre Ceilândia e essa relação com a cultura nordestina?

Zé Moacir:  Ceilândia é a cidade nordestina. Gente, o que tem de nordestino… Tinha, certo? Hoje em dia é brasiliense, não é? Que é o filho… Pois o camarada veio solteiro, casou com uma mineira, casou com um goiano, casou com um outro de fora. Ou veio casado de lá ou voltou e casou na terra dele, mas veio pra cá… Certo? Esse pessoal mais velho era nordestino, a cidade nordestina. Hoje é misto. É filho de nordestino. “Ah, meu pai gostava muito, meu pai admirava [a Cantoria], faltava outra coisa, mas para isso de cantador não faltava.” Era um LP grande que tinha, vinil… E assim era Ceilândia, acolhedora. Sempre a gente cantava nas casas, cantava nos bares. Nos bares a gente cantava… Hoje o povo não está mais querendo por causa da malandragem. A gente canta, mas o camarada é um olho lá outro cá, com cuidado. Ainda faz, mas não é como antes. Aniversários a gente faz, mas agora procuram um clube, vai para um lugar mais diferente… Não é aquela tradição de uma cadeira forrada, você se sentava e ia cantar para o povo num banco, banquinho assim. Lá tem uns bancos de aroeira, uma madeira que tem lá que é muito tradicional, chama aroeira, muquém. É muquém, chama aroeira, que o povo conhecia tradicionalmente aqui – era a mesma coisa naquelas casas, aquelas cadeirinhas. A gente cantava. Hoje aquilo é mais sofisticado, o povo melhorou um pouco de situação, diz: “bota aí um forró, alguma coisa. Um forró não, uma música diferente, um balançado.” Um balançado que eles chamam é rap, um negócio… O povo jovem convence os velhos… Mas às vezes dá, a gente vai tirando a vida ainda.

Domingos:  Voltando um pouquinho na história, como foi o seu contato com a viola, como você aprendeu a tocar?

Zé Moacir:  Unicamente só. Unicamente já é só, mas nunca tive professor, alguma coisinha que eu faço do nosso estilo e só. Ouvia, aí gravava na mente, passava… Porque não tinha [gravador] nessa época, era bem difícil, interior não tinha, não tinha nem energia, não tinha nada. Era pilha para botar nos primeiros gravadores! Mas eu aprendi. Uma palhinha? [Toca baião de viola na viola dinâmica, instrumental.]

Domingos:  E como foi que adquiriu sua primeira viola?

Zé Moacir:  Ah, engraçado, é uma história que eu vou te contar… Meu pai era um profissional, carpinteiro de mão cheia. Na época, não tinha ferramenta industrializada, era tudo aquele rústico grosseiro… Mas ele fazia de tudo. Aí contou-me que quando era jovem fez uma rabeca pra ele, um tipo de uma rabeca. E contou o sistema que fez. E ele tinha ferramenta, ele também fazia uns trabalhos extras, fora, saía com ferramentas fazer bulandeira, que era uma distribuidora de fazer a farinha. Lá no Nordeste, hoje já não tem mais, é a motor, acabou-se aquele negócio… Mas antes tinha aquela bulandeira, era um animal que fazia aquilo. Na época era importante, tinha que fazer aquilo tudo na matemática, de um jeito certo para aquela madeira encaixar ali e movimentar aquilo lá. E o papai fazia tudo. Tinha convite a fazer fora, que era distante, não podia ir todo dia porque era longe, já perdia o dia… Porque era o dia de viagem para onde fosse, de acordo com o lugar. Aí ele ia e ficava lá, e deixava uma parte das ferramentas. Aí eu me lembrei e a vocação puxou pra isso. Eu tirei um pedaço de madeira lá que chama umburana de cheiro, é bem mole. Aí fiz, modelei um tipo de um cavaquinho, um instrumento. Aí perfurei com formão, risquei, cortei, fiz o bojo. Papai tinha cuidado nas ferramentas dele, chegava e: “quem mexeu aqui Carmélia?” Aí ela diz: “Moacir”. “O que você está fazendo?” Eu disse: “nada”, com medo dele brigar. Aí passava. Quando a outra vez: “quem mexeu nas minhas ferramentas?” “Moacir.” “O que Moacir estava fazendo?” Eu digo: “nada, pai.” Aí ele disse: “ah, um dia eu vou ver esse nada o que é.” Ele gostava muito de mim, graças a Deus. Aí passou. Quando foi um dia ele saiu pra ir trabalhar, esqueceu uma ferramenta. Quando ele voltou pra pegar a ferramenta, ele disse: “ah, seu nada era esse, era?” Aí pegou, olhou, disse: “meu filho, deixe o texto, que eles chamam texto isso aqui, aí que eu coloco e os trastes.” Eu digo: “tá bom pai.” Aí criei algo novo que ele não brigou. Aí fui polir, fui passar, raspar com outra coisa, nesse tempo era mais difícil. Aí ele colocou o texto e os trastes. Eu aprendi nisso aí. Tipo cavaquinho, botei quatro tornerazinha, cravelhazinha que chamavam, botava duas, três, quatro, aí fazia um baião. Depois papai viu e aí deu um jeito de comprar um violão. Aí eu já sabia, já tinha visto os cantadores, colocava as cordas… Coloquei nesse sistema [da viola dinâmica].

Aí comecei a aprender a tocar e comecei a viajar com um cantador que tinha lá, que ele me viu e era amigo da família. Ele era um pouco deficiente da voz, era gago: “é, e-e-e-esse vai cantar”, ele dizia, lembro até hoje. Aí comecei a viajar com ele, naquele sistema muito perverso… Naquele tempo, meu irmão, a gente trabalhava muito, porque o povo que ia pra Cantoria queria que cantasse a noite toda. Cantar não era nada, o danado era sair no outro dia, viajar o dia todinho em cima de um animal pra cantar na outra noite. Menino… E eu fiz muito isso com ele, sofrendo subindo serra, descendo serra – porque não tinha transporte. E mesmo se tivesse não tinha estrada, não tinha nada. Era muito, muito, muito árduo… Mas gostoso. Aonde você chegava era uma festa. Espalhava aquela notícia: “os dois cantadores vêm cantar hoje”, era festa! Rádio, raramente tinha um rádio… Quando tinha aquele pessoal não possuía. Pro povo do sertão, tinha que ser ali mesmo. Aí cantava mesmo, passava a noite cantando. Aí já deixava outro trato pra vir outro dia. Depois quando voltava, fazia o mesmo trajeto, cantava pra parcelar a viagem. Era bom, passava um mês fora, passava quinze dias, passava. Um tempo depois, como lá era muito difícil, papai vendeu o nosso terreno no Ceará e comprou um no Rio Grande do Norte. Lá eu tive moleza, porque minha mãe veio a falecer com pouco tempo que a gente estava lá, aí ele casou de novo, construiu família.

Mas eu comecei a sair pra cantar e daqui a pouco apareceram mais cantadores, eram muitos: Azulão, Valdecir Bezerra, vários cantadores… Teve um tempo em que vinha outros de Cajazeiras, Chico Guedes, vários, e a gente cantava. Aí apareceu lá o Louro Branco, até faleceu um tempo desses, nós viajamos [juntos] muito tempo. Ele veio pra região e eu tinha uma Cantoria, ele chegou em hoje Coronel João Pessoa, no Rio Grande do Norte, mas era Baixio de Nazaré. Gostoso… Uns chamavam ruinha, de tão pequeno era… A ruinha que era no município de São Miguel. Depois foi desmembrado e passaram pra Coronel João Pessoa, em homenagem ao ex-governador da Paraíba. Louro Branco chegou com outro cantador e foram pra minha Cantoria, chegou lá e disse: “queria que você cantasse um baião com o Louro Branco.” Aí digo: “olhe, ô rapaz, vou cantar com Louro Branco, pronto.” Aí o Louro se interessou e disse: “ah rapaz, nós vamos viajar.” Eu digo: “mas rapaz, você tem o teu colega.” Ele disse: “não, não tenho, foi porque eu estava sem parceiro e passei na casa dele e ele veio, mas ele tem obrigações, ele trabalha e nós vamos viajar.” Nós tudo novo… Aí eu viajei com ele, descemos a serra tudo de animal. Ele disse: “tem uns tratos e os tratos que a gente tem fazemos nós três, depois a gente viaja, ele fica.” Aí eu viajei com ele, comecei a passar tempo fora. De dois meses passou pra três, passou pra um ano, sem ir lá em casa, porque era difícil, não tinha transporte. Transporte, onde era tradicional, era sessenta quilômetros de distância, na Paraíba, em Cajazeiras. Depois que fizeram embaixo da serra, mas que estrada esburacada, pra subir a serra só no tempo do verão, quando consertava a buraqueira. Era trabalho. Hoje está uma beleza, mas foi sofrido. Mas foi bom, gostoso. Aí me adaptei no sertão do Ceará de novo. Aí em rádio, Iracema do Iguatu, Araripe do Crato.   (Continua…)