Zé Mulato e Cassiano

“Foram modernizando tanto, modificando tanto…
Que nós ficamos diferentes só por continuar no que era.”

(Zé Mulato)

 

“O povo tem uma visão errada do caipira.
Nós é caipira, mas nós não é besta não sô!”

(Cassiano)

Entrevista com os músicos José das Dores Fernandes (Zé Mulato) e João Monteiro da Costa Neto (Cassiano), irmãos que formam a dupla Zé Mulato e Cassiano. Moradores de Taguatinga-DF.

Encontro realizado na residência de Cassiano, em Taguatinga-DF, dia 14 de maio de 2018.
Entrevistadores: Domingos de Salvi, Sara de Melo, Daniel Choma e Tati Costa.
Transcrição: Tati Costa. Fotos e editoração: Daniel Choma.

Zé Mulato nasceu em Ferros-MG, dia 12 de agosto de 1949. Cassiano nasceu em Passabém-MG, dia 19 de abril de 1955.


Zé Mulato:
  Tem dois personagens importantes que eu tenho, como diz os goianos, ojeriza mesmo: é o Aurélio e o Monteiro Lobato. Todos os dois é muito grande, mas pra mim eles pisaram na bola. Monteiro Lobato descreveu um caipira imprestável, doente, preguiçoso, coisa que o caipira não é. E taxou de burro. O Aurélio escreveu “matuto e ignorante”. Pisou na bola, mas alto. Porque o cara pra chamar alguém de ignorante teria que explicar sobre o quê. Pra ele dizer sobre o quê que o caipira é ignorante ele ia demorar outro livro do tamanho do dicionário dele. E aí sim: a elite do Rio de Janeiro que ele achava que era o não ignorante, se vier cá pro sertão, esse que é ignorante mesmo. Se você bota ele lá, ele não sabe procurar uma grota pra beber uma água. Então pra chamar alguém de ignorante, ele tem que dizer sobre o quê. O caipira pode ser ignorante quanto às coisas do Rio de Janeiro, de São Paulo. Mas cá no mato ele é doutor. E chama o sabido de lá que ele vai quebrar o nariz mesmo cá no mato. Ignorante é não saber, então ele usou a palavra muito mal. Que eu tenho a letra, melodia e inclusive poesia como se fosse uma gestação de um filho que nasce. Isso sai de dentro, principalmente do cérebro, mas quem comanda, segundo os sentimentais, é o coração. Então a gente gosta de todas as coisas que a gente criou com amor, muito. E eu brinco às vezes dizendo, como pai não acha nenhum filho feio, tem moda que a gente gosta um pouco mais do que a outra, mas gosta de todas. Eu vou cantar pra você “Poesia não se vende”, é uma toada que eu gosto muito. É dessas tais que… Quando aquela bronca começou, aquele negócio: “sertanejo é uma coisa, caipira, Deus me livre, é outra coisa”… Foi aí que começou essa história: “Poesia não se vende”.

[Zé Mulato na viola caipira e Cassiano no violão seis cordas, tocam e cantam “Poesia não se vende”, de autoria de Zé Mulato e Cassiano]:

Poesia não se vende
Então não fale em dinheiro
Não sei se cantar é sina
E nem de quem sou herdeiro
Mas meu destino é cantar
Fazer poesia simplória
Semelhante aos passarinhos
Só cantar é minha glória

Não sei quem foi o poeta
Que com o nó na garganta
Disse um dia apaixonado
Quem canta seu mal espanta
Vivo distante da fama
Nem preciso muito dela
Simples como a flor do campo
Eu levo essa vida tão bela

Cantando coisas tão simples
Tento fazer minha história
Sentimentos e paixões
Povoam minha memória
Mas nenhum deles consegue
Me roubar a alegria
Se alguma mágoa me amola
Eu transformo em cantoria

Não sei quem foi o poeta
Que com um nó na garganta
Disse um dia apaixonado
Quem canta seu mal espanta
Vivo distante da fama
Nem preciso muito dela
Simples como a flor do campo
Eu levo essa vida tão bela

Todo dia peço a Deus
Que me permita seguir
Levando aos meus semelhantes
A vontade de sorrir
E se não for pedir demais
Deixe que eu morra cantando
Quero despedir sorrindo
Porque já nasci chorando

Não sei quem foi o poeta
Que com um nó na garganta
Disse um dia apaixonado
Quem canta seu mal espanta
Vivo distante da fama
Nem preciso muito dela
Simples como a flor do campo
Eu levo essa vida tão bela.

Zé Mulato:  Isso é uma toada. A gente às vezes faz questão de falar sobre o ritmo, porque foram abandonando a questão dos ritmos característicos. E eu não sei quem foi o dito cujo que inventou a tal bateria, que é um trem até muito bom, mas a mão direita dos cantadores foi sumindo. A bateria é ótima, mas ela é sem alma, ela não tem sentimento, é puf puf e pronto. Então a batida característica da toada, cateretê, rasqueado, essas coisas, foi ficando meio no esquecimento.

Cassiano:  Nossa implicância com a bateria e contrabaixo, não tem… O problema é que o que falta é bom senso. Em outros ritmos tudo bem, ela cabe em todos, mas o cara tem que ter educação pra isso. No caso da música caipira é horrível, porque o cara bate bem onde tem que sair [exemplifica tocando a violão.] Então aquilo… Então não tenho implicância com a coisa. Quem achar que eu estou implicando, vai no Clube do Chorinho e vê o baterista trabalhar. Ali é o baterista que não é um tarado, que quer arrebentar… [Risos.] Aquele que é bom!

Zé Mulato:  Se bem que ele pode até ficar por lá que não faz falta pra nós…

Domingos:  Vocês são de onde?

Cassiano:  Nunca se sabe! [Risos.]

Zé Mulato:  Uai sô, de Minas Gerais. Nós somos mineiros. Eu nasci na cidade de Ferros. Mas como filho de pobre muda muito e o trem era mais horrível que hoje… Eu nasci e meu pai mudou pra cidade de Passabém. Aí nasceram Maria Helena, Davi, o Cassiano que é o João lá de casa, Daniel, Lídia, Merian, Nilma e Enésia nasceram em Brasília.

Cassiano:  Passabém não é “passa bem” não, é Passabém, uma palavra só. Vocês sabem que muitas cidades aqui de Minas, do Goiás, por aí, tudo surgiu por uma coisa que acontecia e ficou o nome. Depois eles mudaram… Aqui mesmo mudaram o nome de Dois Irmãos, que de Dois Irmãos está bom demais, e Passa Quatro foi mudando o nome porque modernizaram o trem. Agora lá no Passabém, no tempo antigo o pessoal andava com tropa e tal. E tinha um local lá que dava num lameiro danado e ficavam dizendo: “como é que está lá, compadre, está passando bem?” Aí passava. “Ah, o trem tá feio…” E aí foi crescendo a cidade, ficou o nome de Passabém.

Zé Mulato:  É, naquele canto lá passa bem… Tocando dez burros carregado, o burro sozinho já atola, agora se ele tiver carregado…

Cassiano:  A cidade de Passabém é isso. Depois veio um inteligente e botou Passanópolis. Pode ser linda… Mas Passabém todo mundo sabe o que é. Então devolveram o nome de Passabém, ainda bem, até hoje está assim. Então nós somos de lá.

Domingos:  Onde vocês nasceram, era contexto rural ali ou não?

Zé Mulato:  Ah, muito rural. Tão rural que evoluiu, virou o diacho. Botaram até asfalto indo pra lá, mas ainda continua rural. Eu fui lá rapaz… Tem muita poesia escrita por aí sobre voltar pra minha terra, sentir falta disso ou daquilo. Mas na época que eu fui… Que eu sou o primeiro de uma ninhada de dez, e às vezes brincam que eu sou a experiência que deu certo. Depois de mim arrumaram mais nove! [Risos.] Então eu voltei lá e senti falta de muita coisa. Que a gente quando era menino tinha o prazer de brincar numa meia caverna que tinha lá, era uma pedreira que dava pra esconder de chuva embaixo e tal. Ali a gente fazia gaiola, fazia coiso… Então aquilo acabou, mexeram… Mudaram tanto que até o ribeirãozinho que a gente pescava lá, está só um reguinho d´água muito ruim.

Cassiano:  É, a coisa triste que eu achei lá foi isso, depois de tantos anos… A água, cara, sumiram com a água! A gente pescava aqueles trairão ali, tomava banho – que lá tem um lugar que chama caracol. Então tinha uma cachoeira que de longe você a escutava urrando… Chega lá você tem que escutar bem [de perto] assim, está “plim, plim…” Acabou a água. E as árvores cortaram tudo. O resto está lá, estão tudo passando bem lá… [Risos.] E está pensando o quê? Tem até luz elétrica, tem até asfalto, está pensando? É, nós progredimos.

Zé Mulato:  Poluíram muito.

Cassiano:  Está passando melhor que no passado.

Zé Mulato:  Já tem lá até cavalo, o autêntico filho de uma égua, chamado de horse. É, coisas esquisitas….

Domingos:  Lá o pai de vocês era agricultor, trabalhava com o que lá?

Zé Mulato:  Ô filho, nós não somos nem agricultor, nós somos roceiro mesmo. Daqueles que viveram no cabo da enxada, comia do que plantava. Eu atingi isso primeiro, que eu sou o primeiro filho. Quando folgava nossos serviços meu pai pegava empreitadazinha ou então plantava a meia. Você fazia a colheita, metade era do dono da terra e metade de quem plantou. E ainda nós puxou muito enxada… O Cassiano ainda puxou um pouco também, mas ele já estava mais moderno, mais novo, ele veio pra Brasília um pouco antes.

Domingos:  E lá em Minas, ainda nessa época, você teve contato com viola?

Zé Mulato:  O primeiro contato meu com viola foi lá. Tem o Volmi Batista, que é o nosso produtor, companheiro do bom. Eu guardo, que ele colocou num release. Mas é o seguinte, meu primeiro contato com viola: apareceu um camarada, hoje a gente não sabe que é um andarilho e tal. Mas esse homem ninguém sabe de onde ele veio. E viveu por lá uns tempos. E também não se sabe pra onde foi.

Cassiano:  É, mas foi.

Zé Mulato:  Só que ele tinha uma violinha de Queluz, daquelas violas de cravelha de pau, que o barulho de afinar viola era muito mais do que o toque: “qué, qué, qué…”

Cassiano:  Era muito ruim.

Zé Mulato:  E a violinha só tinha traste até aqui, era chamada meia regra. Afinação de Rio-abaixo. E ele tocava, contava causo, as histórias, e solava. Contava o causo tocando a violinha. E eu fui dos que mais me influí, da roda de meninos que andavam em redor dele, meninada danada… Eu, naquela época, uns doze anos, onze, vivia rodeando ali. E ele sentindo o meu interesse passado da quantia, um dia ele resolveu, me ensinou a afinação do Rio-abaixo. Como meu pai já tocava cavaquinho, que cavaquinho na realidade é o Rio-abaixo faltando só uma corda de cima… Esse foi o nosso primeiro contato com viola. Cassiano veio menino ainda pra Brasília.

Cassiano:  É.

Zé Mulato:  Mas já com essa… Meu pai tocava cavaquinho, eu já arranhava alguma coisa na viola, e influímos aqui no meio dos cantador.

Cassiano:  Fui conhecer violão aqui já em Brasília. Eu ganhava muito pouco, mas também não estranhava que eu já estava acostumado com aquele trem. E o cara queria vender um violão pra mim. Ele cismou de vender o violão, eu falei: “moço, eu não posso comprar um violão”. Aí foi baixando até que eu comprei o violão. Isso foi em 1972, por aí. E de lá começamos esse trem. Então eu peguei viola foi aqui [em Brasília], e por incrível que pareça… Claro que eu ouvia música caipira quando era menino, lembro de algumas, mas meu pai, gente crente, eles ficavam muito em cima… E a gente fugia pra ver uns batuques, uns trem, mas era um pecado, não podia! Mas chegando em Brasília que eu fui pegar violão e fui acompanhar ele aqui. Aí eu fui achando mais a música caipira. A música caipira eu aviso pra vocês, você começa a conhecer e você vai gostando… Aí você vai conhecer quem foi quem, quem, quem… Aí você já conhece a história toda e você se apaixona. Daqui a pouco você está brigando pra defender a música caipira. É. Porque o trem é das coisas mais autênticas que o Brasil tem, é isso aí. E nós tentamos, apesar dessa guerra toda poluída, a gente procura manter o que é música caipira de verdade, não importando com negócio de sucesso, de riqueza. Porque riqueza sua é a sua vida. E tudo que você pensa que tem você não tem, é dos outros… Então o que você tem bom é a vida que Deus te deu. Então, já vamos por aí. Eu venho defender música caipira, porque é como eu te falei: a gente passa a gostar, a conhecer cada vez mais, e aí você defende. É o nosso caso.

Domingos:  A dupla Zé Mulato e Cassiano começa quando?

 Zé Mulato:  Olha, a dupla foi formada em 1971 na realidade. Agora, nós fomos no rádio a primeira vez, finalzinho de 1973.

Cassiano:  É.

Zé Mulato:  Primeira ida nossa foi na Rádio Nacional. O Valdecir de Castro, lembrei o nome do miserável. Eu não sei se morreu, mas deve ter morrido porque ele já era velho e eu era rapazinho novo. E eu já estou bem andadinho já… De qualquer maneira, lá de onde ele estiver, seja da outra banda seja de cá, ele deu a primeira oportunidade pra nós na Rádio Nacional. Fizemos meia hora. O Cassiano formou a dupla na segunda-feira e cantou já na quarta na Rádio Nacional. Cantamos naquela época duas músicas do Tonico e Tinoco, que era a dupla da época. E assim começou a história do Zé Mulato e Cassiano. Começaram a gostar. E naquele tempo, o negócio de telefone era raro, [as pessoas] escreviam, pediam e tal… E com essa nós fomos conseguindo mostrar a cara e estamos tentando até hoje. E já estou bem mais animadinho do que naquela época!

Cassiano:  Mas isso é uns trem… Vocês que é mais jovem, a gente fala e o pessoal até ri da gente. Era assim: não tinha sapato, pobre era com pezão no chão. O pé criava um trem, parece um chinelo de dedo assim… Aquilo era uma couraça. Pisava em prego, em qualquer trem, você entendeu? Sapato nem pensar. Quando eu calcei o primeiro sapato furadinho que veio não sei de onde, dava um chulé desgramento… Todo furadinho assim, parece que era de plástico. E eu ficava todo metido, assim…

Cassiano:  Mas então, chegava no domingo o povo ia pra missa ou pra igreja. E chegava nessa água que eu te falei, que a água infelizmente [hoje secou]… Vinha com o pezão no chão. Mas tinha trabalhado tanto, conseguia uma botina. Tinha uma botina que chamava rinchadeira, que era feita no prego. Aí os caras vinham com aquilo amarrado nas costas, as mulheres, as moças…

Zé Mulato:  Pra não gastar a botina.

Cassiano:  Pra não gastar a botina. Quando estava chegando ali [perto da igreja], passava água nos pés, calçava aquilo e ia pra missa. Chegava: “ave, ave, coisa e tal, vocês podem ir pra casa meus filhos e tal”. A escada da igreja, muitos já descia amarrando e botando aqui o sapato nas costas.

Zé Mulato:  A botina atrelada com o cadarço, jogada nas costas pra não gastar.

Cassiano:  Alguém falou pra mim: “Bom, mas Cassiano, isso existiu mesmo?” Eu sou velho mas não é tanto assim não… Mas era verdade!  (Continua…)