Domingos de Salvi

“Memória é a tecnologia de reinvenção de si próprio.”

Entrevista com o músico, professor e pesquisador Domingos de Salvi, morador do Guará-DF.

Gravação realizada no Orbis Estúdio, em Vicente Pires-DF, no dia 11 de dezembro de 2019.
Entrevistadores: Sara de Melo, Daniel Choma e Tati Costa.
Transcrição: Tati Costa. Fotos e editoração: Daniel Choma.

Domingos de Salvi nasceu em Limeira-SP no dia 20 de abril de 1984.

Tati: Você é natural de onde?

Domingos: Sou natural de Limeira, interior de São Paulo. Uma cidade ali na região de Campinas, perto também de Piracicaba, uma cidade importante também na questão da viola caipira. Ali tem bastante cururu, tem o Rio de Piracicaba. E Limeira é uma cidade que se perdeu um pouco essa questão da tradição de viola. Hoje em dia o pessoal tem resgatado Folias de Reis… Mas a Limeira que eu nasci era uma Limeira muito operária, final de semana churrasco na casa das pessoas, brincadeiras na rua, coisas assim.

Tati: E na sua infância você já tinha alguma relação com a música?

Domingos: Tinha uma relação de ouvir música, meu pai, minha mãe eles ouviam muita música, meu pai comprava muitos discos. Roberto Carlos a coleção toda de Roberto Carlos ele tinha em vinil. Mas ele gostava muito de ouvir Clara Nunes, Martinho da Vila, Fagner. Minha mãe também sempre gostou de música clássica também, era bem eclético. Então eu ouvia muita música. Não tinha o contato propriamente com o instrumento, nesse período nessa primeira infância, vamos dizer.


Sara: E quando você teve o primeiro contato, que instrumento?

Domingos: Eu acho que foi a partir do momento quando meus pais se separaram, eu fui morar na casa da minha avó. E na casa dos meus avós maternos, meu avô toca violão até hoje, é poeta. E um tio também, meu tio mais novo, ele também toca violão, na época ele estava começando a tocar mas já se destacava no meio dos amigos. Então ali naquele período comecei a ver as pessoas tocarem violão na minha frente. Então esse foi o primeiro contato, mais precisamente com o instrumento.

Tati: E com a viola como foi seu primeiro contato?

Domingos: A viola começou primeiro com a questão auditiva mesmo, da audição do repertório das duplas caipiras. Com onze, doze anos eu já comecei a ouvir bastante Tião Carreiro e Pardinho, Tonico e Tinoco, Zé Carreiro e Carreirinho. Meu avô era muito fã do Zé Carreiro e Carreirinho, então eu ouvia bastante essas duplas. Aí o contato com a viola mesmo veio já quando eu estava com dezoito pra dezenove anos. Eu ganhei o instrumento da minha mãe. A minha mãe me deu uma viola que ela comprou de um senhor, um violeiro que havia falecido. Então a filha desse violeiro estava vendendo sanfona dele, as ferramentas, viola, tinham outras coisas… Aí minha mãe comprou uma viola achando na verdade que era um violão. Na época foi vinte reais que ela pagou! Mas vinte reais na época valia um pouquinho mais. Mas ainda assim era um preço muito insignificante. E ela levou pra casa do meu avô essa viola e aí que meu avô falou: “isso não é um violão, é uma viola.” E eu lembro que eu vi aquele instrumento cheio de cordas, aí eu fiz assim [Dedilha a viola] Claro que estava tudo desafinado, mas aquilo me tocou muito. Mudou minha vida naquele momento. Mas foi assim que chegou a viola, meio que por acaso, a minha mãe achando que era um violão. Porque eu já tocava violão nesse período, antes da viola eu toquei outros instrumentos, mas as viola aconteceu dessa forma.

Tati: E quem foi seu professor?

Domingos: Uma coisa que colaborou muito com meu aprendizado no instrumento foi a própria questão da audição mesmo, você ter audição do repertório ajuda assim de uma maneira incrível. Porque a viola, os traquejos do instrumento, você tem que ouvir as duplas, os violeiros de duplas caipiras, os violeiros solo também. Tem que ouvir porque cada um tem um jeito, um trejeito de fazer os ritmos. Então como eu ouvia bastante já as duplas foi um pouco fácil a parte inicial. Eu fui meio que sozinho no começo, bastante parte do caminho eu fui só mesmo. Ouvindo, tentando tirar de ouvido. Eu lembro que quando eu comecei, conseguia a tirar um solo do Tião Carreiro, começava a me sentir violeiro ali! Então era muito legal essa descoberta, muito empírica mesmo, não tinha estudo formal de música então eu ia bem experimentando, descobrindo. E nesse período que era final de 1999, início dos anos 2000. A viola chegou em 2003, mas em 2000, 99, por aí, teve um programa na TV Cultura chamado “Violeiros do Brasil” que foi organizado pela Myriam Taubkin. Ela reuniu uma série de violeiros e fez vários shows por SESCs no estado de São Paulo. E depois a TV Cultura televisionou e me lembro que nessa época eu assistia muito a TV Cultura. Aí  quando deu a chamada desse programa eu fiquei super ligado pra não perder nenhum e eu gravei em fita VHS na época. Eu gravei todos e nem tocava viola nesse período.  E nossa, eu fiquei encantado ali. Vi o Roberto Corrêa tocando, Ivan Vilela, o Pereira da Viola, Zé Mulato e Cassiano, os saudosos Renato Andrade, Zé Coco do Riachão, já que estavam no auge do reconhecimento deles também. Então foi um programa muito especial, acredito que influenciou muita gente a tocar viola. Então quando eu recebi a viola dessa maneira meio por acaso eu já tinha essa audição um pouco desse conhecimento dos violeiros solistas. E foi muito bom e aí eu também tentava tirar de ouvido. Ficava lá tentando tirar “Araponga Isprivitada”, do Roberto Corrêa. Eu via a mão dele fazendo assim aí eu  tentava copiar. Foi muito especial esse período, foi uma escola mesmo.

Tati: E era só de assistir ou você teve alguém que te ensinou? Ou foi um estudo autodidata?

Domingos: Nesse período foi bem autodidata mesmo. Só que era assim, hoje em dia a gente tem You Tube, você vai no You Tube, nessas mídias digitais… Eu lembro que eu colocava a fita, tinha que ficar voltando a fita, nossa, o maior trabalho. Mas teve um momento que as pessoas começaram a notar o meu desenvolvimento na viola. Então eu comecei a receber alguns convites para dar aula. E mesmo sem saber tocar direito eu falei: “poxa…” Aceitei, comecei a dar algumas aulas. Não tinha sistematizado nada. Mas aí eu senti uma necessidade de realmente aprofundar com mais base, entender melhor o que eu estava fazendo. Aí eu comecei a procurar professores na minha cidade mesmo que é Limeira. Fui em uma escola, procurei, tinha um professor lá, o Rafael, da dupla hoje Eduardo e Rafael. Aí conversei com ele, me mostrou algumas coisas, me falou de alguns métodos. E eu acho que esse instinto autodidata, na hora que eu descobri isso, descobri que existia alguns métodos. Ele me corrigiu de algumas coisas. Eu falei opa, beleza! Aí eu desisti de fazer aula com ele e continuar o meu estudo autodidata. Com aquilo que ele me ensinou naquela conversa… E fui atrás dos métodos também. Em Limeira não era tão difundida, na época em nenhum lugar, a viola estava ainda, esse momento que nós estamos vivendo da viola hoje. Naquela época estava começando, você entrava nas lojas de música não tinha instrumento pra comprar. Até que um dia… Tinha o Braz da Viola também no Violeiros do Brasil, que foi esse programa. Aí eu entrei em contato com o Braz da Viola, mandei uma mensagem pra ele ou liguei, eu acho que eu liguei na época. Perguntei se ele me aceitaria pra me dar uma aula. Fui até a casa dele, na época ele morava em São Francisco Xavier, passei lá uma manhã com ele. Viajei um tempão, saí de casa super cedo, foi bacana. Ele me deu uma aula, me esclareceu algumas coisas da metodologia que ele já utilizava e aquilo me ajudou bastante também. Voltei pra casa, aprofundei um pouco mais naquela linguagem. Nisso eu já estava entrando cada vez mais no universo da viola instrumental. Então foi bem bacana! Vamos dizer que o primeiro professor com quem eu tive aula foi o Braz da Viola. Não sei nem se ele lembra disso, acho que não, mas foi… Comecei a receber convite de escolas mesmo pra dar aulas, escolas de música lá na minha cidade. Até que passou um tempo, recebi um convite do maestro Rodrigo Müller para inaugurar, pra dar início ao curso de viola caipira da Sociedade Pró Sinfônica, que é um curso da escola da Orquestra Sinfônica da cidade de Limeira. Era um curso livre. E a viola seria o primeiro curso de música popular. Então assumi essa demanda em 2005. Foi outro desafio também ali. E conforme eu fui também dando aula eu senti outra necessidade de novo, falei: “não, agora eu preciso me aprofundar mais, estou com uma responsabilidade maior.” O curso era coletivo, então eu dava aula sempre para dez pessoas, um número assim, então você tem um público muito diverso. Então ali eu comecei a sentir essa necessidade de ampliar o leque metodológico e de repertório também.

E aí na época mandei um e-mail para o Ivan Vilela. Ele me respondeu rápido e nessa época ele morava em Ribeirão Preto, ele era professor na USP de Ribeirão e também fui lá na casa dele em Ribeirão Preto, tive uma aula com ele. Foi muito bacana… Foi uma aula que até hoje me influencia muito. E na verdade mal peguei na viola porque ele também não me conhecia, ele pediu: “toca alguma coisa para eu ver como que é…” E aí depois que eu toquei ele falou: “Domingos, posso só falar de postura hoje?” E aí foi um pouco frustrante pra mim na hora, falei: “nossa, poxa, falar de postura, não vai tocar…” Mas foi revolucionária essa aula, até hoje eu reflito sobre essa maneira, essa técnica, a questão corporal mesmo,  a influência que isso tem na tocabilidade. E abriu um mundo pra mim essa aula, foi muito especial também. Então minha segunda aula, meu segundo professor foi o Ivan Vilela. Depois fiz mais uma aula com ele, mas foi assim, dois encontros… Bem espaçados… Mas sobretudo eu estava aprendendo muito dando aula. Cada aluno, ali, nossa senhora! Cada um era uma escola porque você encontra pessoas que estão começando a tocar um instrumento pela primeira vez e você encontra pessoas que já são violeiras só que às vezes por um motivo ou outro das demandas da vida ela deixa o instrumento guardado e esquece. E ela vê uma oportunidade e retoma. E esse momento, foi 2005, 2006, era um momento muito especial eu acho na cultura mesmo geral do Brasil. Porque os cursos de viola estavam se espalhando pelo estado de São Paulo todo. Não só estado de São Paulo, mas Minas [Gerais], Mato Grosso, outros estados, em Brasília também. Mas com uma força muito grande com essa questão dos cursos coletivos e paralelo a isso também o aumento das Orquestras de viola. Então, nossa… Vinha, eu lembro de alguns alunos meus, uns senhores que tinham um toque de viola já muito rebuscado só que ele queria melhorar, enfim… E é engraçado porque eles chegavam se sentindo como se não soubessem nada pelo fato de estar numa escola. Então eu acho que isso é uma contribuição muito importante que a viola tem dado à música brasileira, ao ensino da música no Brasil, que é essa memória musical mesmo, que quem ouve viola ou quem carrega uma prática já desse instrumento traz consigo. É uma memória que está disponível pra gente utilizar e se apropriar disso e passar pra frente, que é uma riqueza. Porque a viola é um instrumento que a gente sempre vai estar ensinando usando a referência de alguém. Sempre a gente fala: “você viu? Aquele fulano, faz o toque de cururu desse jeito… Aquele faz uma guarânia assim…” Então é uma gama de detalhes que estão espalhados pelos violeiros e que hoje os professores tentam trazer isso, sistematizar. Eu acho que a gente está num momento importante agora do ensino. (Continua…)