Cacai Nunes

“O instrumento ganhou bastante nos últimos anos, muita gente nova estudando pra caramba. Essa coisa do choro é uma realidade que realmente amplia as possibilidades do instrumento. Não que tocar essencialmente choro vai ser fundamental, mas você entender um pouco dessa realidade do choro faz com que você toque vários tipos de música. Porque o choro é base pra muita música no Brasil. ”

Entrevista com o músico Carlos Eduardo Nunes Pinheiro (Cacai Nunes), morador de Sobradinho-DF.

Entrevista realizada na sua residência, em Sobradinho-DF, dia 18 de setembro de 2018.
Entrevistadores: Domingos de Salvi, Sara de Melo, Daniel Choma e Tati Costa.
Transcrição: Tati Costa. Fotos e editoração: Daniel Choma.

Cacai Nunes nasceu em Recife-PE no dia 17 de agosto de 1978.


Cacai
: 
Eu nasci em Recife, cheguei em Brasília com cinco anos. Então já são trinta e cinco anos de Brasília.

Domingos:  De Recife, você tem memórias?

Cacai Ah, pouquíssimas. Assim, eu retorno lá, tenho umas lembranças ainda de infância… Mas desses primeiros cinco anos de vida quase nada, quase nada mesmo.

Domingos:  Sua família veio pra Brasília?

Cacai:  É, anos oitenta, aquela história de nova cidade, oportunidades… Minha mãe trabalhava no Banco do Brasil, então poderia pedir a transferência. Meu pai é formado em letras e direito, exercia também a profissão de advogado, mas é músico. Ele é pianista, então aqui também conseguiu uma acolhida boa, tocar e tal. Até hoje ele está tocando.

Domingos:  Você tem irmãos?

Cacai:  Tenho seis irmãos, nós somos sete. Só uma nasceu aqui, o resto tudo nasceu lá.

Domingos:  Tem mais músicos no meio?

Cacai:  Tem, tem um irmão que toca guitarra. Ele é bancário, trabalha no Banco do Brasil, mas toca guitarra, tem uma banda de pop rock e toca frequentemente. Ele tem tocado na noite aí de Brasília, mas não vive exclusivamente da música.

Domingos:  E quando vocês vieram para Brasília, onde foram morar?

Cacai:  Moramos no Plano Piloto, moramos na Asa Norte. Moramos dez anos em um apartamento na Asa Norte. Aí eu tenho muitas memórias, boas lembranças, que foi dos cinco aos quinze, fase de desenvolvimento pleno, de infância total. Dessa época sim, eu tenho boas lembranças, bons amigos ainda dessa época. Depois fomos morar no Cruzeiro, numa casa, que eu fiquei lá de 1994 até 2012, quando eu vim pra cá [zona rural de Sobradinho]. De 2012 até 2018 eu estou aqui.

Domingos:  E nessa época da Asa Norte, como é que era essa Brasília em que você cresceu?

Cacai:  Ah, a gente podia brincar embaixo do prédio, podia correr, gritar, tinha um vento danado! Era uma cidade muito menos desenvolvida, muito menor, você encontrava mais facilmente as pessoas que conhecia, do seu meio. Você as encontrava no trânsito de bobeira… E isso não é nem dos anos oitenta não, mais pra frente ainda, início dos anos dois mil: você ainda encontrava muita gente conhecida. Brasília cresceu demais, muita gente veio… Cresceu geograficamente também pra todo lado, muita casa pra todo lado, muitas formas de ocupação de espaços então desordenados. Então, a cidade até perde um pouco com identidade. Quer dizer, falando-se de Brasília, porque Brasília é um espaço dentro do Distrito Federal. Hoje em dia eu sou mais Distrito Federal do que Brasília. As minhas relações cotidianas estão mais voltadas a Sobradinho. Claro, preciso de Brasília em função de alguns trabalhos, etecetera, mas nessa época era tudo mais verdadeiro. Eu não sei, estamos num momento em que a gente está em um choque ético, moral, uma falta de civilidade enorme. Então eu tenho um pouco de preguiça de grandes aglomerações de pessoas. Eu não sei o que seria de mim vivendo num apartamento com alguns vizinhos em volta de mim, sabe. Ultimamente eu estou mais gostando de plantas e animais, são o que tem mais me atraído. Agora que vai voltar a chover então, aí que vai ser mais gostoso ainda… Desviei um pouco do assunto, mas no fundo, no fundo… [Risos.]

Domingos:  Vivendo aqui você presencia mais as estações, o cerrado?

Cacai:  A seca é um período que a gente sente muito… Você vê: isso aqui é uma grama, isso aqui realmente foi plantado, a gente plantou essa grama, parece que não tem nada, agora está querendo rebrotar. Fica tudo muito esturricado, o ambiente muda bastante, os animais também se entocam um pouco mais. Mas eu fico pensando, se aqui está assim, imagina na cidade o tanto que é sufocante, com o tanto de concreto e o tanto de carro… Mas aqui a gente consegue sentir mais a chuva. Às vezes estou aqui num silêncio desse e falo: “a chuva vai passar batido…” Ela passou batido. E às vezes você ouve, num silêncio desse tão grande, você ouve a chuva chegando assim: “chhhhhhhhh… Chhhuuu…” E de repente ela está aqui do lado. E às vezes você a vê passando e olha no horizonte, ela está lá na frente… É outra relação com você mesmo e com o ambiente em que você vive, ocupa, com os animais e tal.

Domingos:  E isso tem a ver com viola?

Cacai:  Tudo, né! Como não? A viola é um instrumento que participa dos momentos de colheita, dos momentos de sofrimento, dos momentos de paixão, dos momentos de felicidade…. E de tristeza também. Permite também aflorar todos esses sentimentos e a criatividade, claro, potencializa. Ultimamente, até em função das lidas familiares e etecetera e correrias, a minha criatividade está um pouco estagnada. Tenho uma liberdade grande aqui em termos de horas e funções, etecetera, mas pra você criar você precisa desapegar de muita coisa. E as correrias ultimamente não estão me permitindo. Mas esse lugar aqui, ele é criativo por si só. Você já se desconecta, esquece um pouco as loucuras do dia a dia e se permite a criar e recriar sempre.

Domingos:  Nas suas músicas, como o cerrado aparece? Você se inspira no cerrado?

Cacai:  Sim, tem encontros e situações aqui que me fazem criar. No meu segundo disco, que foi gravado aqui… Inclusive, o segundo e o terceiro foram gravados aqui… Mas no segundo foi mais interessante o processo de gravação, porque a gente ficou bem enfurnado aqui. A gente fez uma imersão no disco: foram seis dias de gravação ininterruptos, gravando de dez da manhã até oito horas da noite, dez horas da noite. Nesse disco tem músicas que mostram mesmo a minha relação com esse espaço. O nome do disco é “Casa do Chapéu” que é exatamente o nome desse lugar. Tem a música “Lobo Guarânia”, que foi em função dos encontros que eu tive aqui nessa estrada de terra por onde vocês vieram. Um lobo guará que eventualmente apareceu aí, três vezes ele apareceu, não sei se é o mesmo… Algumas vezes eu tive essa felicidade de encontrar lobo guará. Aqui tem muita siriema, tem cobra, tem escorpião… Porque eu estou no ambiente deles, não é? Tem sapo… Tem um sapo que mora ali que o bicho é desse tamanho assim, parece uma lajota, o bicho. É um sapão cururu. Então, tudo isso entra nessa viola e sai em forma de música, com essa sonoridade incrível desse instrumento.

Domingos:  Pode tocar um pouquinho esse cerrado aí?

Cacai:  Vou tocar o “Lobo Guarânia” então…

[Toca na viola caipira a música instrumental “Lobo Guarânia”, de sua autoria.]

Domingos:  “Lobo Guarânia”…

Cacai:  “Lobo Guarânia”!

Domingos:  Guarânia e choro juntos? Como que é isso aí?

Cacai:  É… Em função desses três encontros com o lobo guará, eu fiz uma música em três partes. Então ela tem uma estrutura mesmo de choro assim, bem característico do choro. Começa a música numa tonalidade menor. Depois na parte B, é tocada duas vezes a primeira parte, depois na parte B duas vezes numa tonalidade da relativa que é fá maior. Volta uma vez pra parte A, aí passa pra duas vezes na parte C. Que é a mesma estrutura presente num choro mesmo. Aí depois duas vezes na C, ela volta pra terminar uma vez na A e finaliza. Cara, você vivendo em Brasília agora há alguns anos, você está vendo que a cidade é uma cidade misturada, e que não há uma única característica que você pode afirmar em termos culturais, em termos musicais mesmo. É uma cidade que tem muita gente de todo canto do país e que muita coisa acontece em função disso. Eu sou um nordestino criado em Brasília que não tenho vivência alguma na música caipira e resolvi tocar um instrumento que é a síntese da música caipira – na afinação ainda dos caipiras. Poderia muito bem ter ousado e ter tocado, por exemplo, na afinação natural do violão. Mas assim que eu saí do violão e da guitarra…. Eu nunca estudei violão, foi tudo bem de ouvido e eu estava realmente atrás de um instrumento novo, de algo novo. Então eu embarquei no Cebolão mesmo. E esses encontros com pessoas de diversas vivências me possibilitou ter também uma diversidade dentro da minha música que não me rotula nem como um chorão, que eu realmente não sou, nem como um caipira, que eu também não toco música caipira tradicional. Não tenho dupla, nunca formei dupla, não é da minha vivência, apesar de adorar, de gostar e de conhecer um pouco, não é essa a minha praia. Também convivi e vivo convivendo com muita gente que, quando eu estava começando a tocar viola, sempre tocou choro. Então a minha interação musical com outros músicos se deu em função de rodas de choro. Quando eu estava começando a tocar viola, tocava um repertóriozinho pequeno e tal… E tinha muita roda. Os amigos todos na roda, eu penso: “bicho, tenho que entrar junto, entrar nessa parada aí porque senão não vou tocar com ninguém, ou vou tocar outras coisas que não é da galera, entendeu?” E era muito eufórico, era todo mundo interagindo junto, todos os instrumentistas, violão, cavaquinho, pandeiro, flauta, clarinete, trombone, sanfona, bandolim… E tinha que ter uma viola lá. Resolvi estudar uns choros, resolvi entender um pouco desse contexto musical, dessa praia que é complexa pra caramba. E é complexa para o instrumento, mas o instrumento precisa ter esse desenvolvimento musical em outros gêneros, em outras praias, entendeu? Eu vejo isso assim. O instrumento, ele não pode… Não sei, é complicado porque quando você fala de viola, o tradicional é sempre muito pé no chão… E eu sou mais pé na estrada, digamos assim, sabe? Eu acho que a gente tem mais é que misturar as coisas. O instrumento, ele não chegou aqui caipira, ele chegou aqui de uma forma e se caipirizou, digamos assim. E também se nordestinizou lá no nordeste. E no Paraná é fandango… Eu acho que Brasília me possibilitou ser um pouco dessa mistura, sem ser nem um nem outro.   (Continua…)