Joaquim de Felipe
- seção: entrevistas
“[Antigamente],
mulher não podia participar,
mulher não podia dançar Catira,
mulher não podia cantar – que os antigos não aceitavam.
Era só os homens.
E inclusive eram só os homens mais velhos,
porque não tinha oportunidade de os novos aprenderem.
Por isso que os foliões acabaram, foi acabando…”
Entrevista com o guia de Folia Joaquim Luís de Sousa (Joaquim de Felipe), morador de Planaltina-DF.
Encontro realizado em sua residência em Planaltina-DF, dia 13 de maio de 2018.
Entrevistadores: Domingos de Salvi, Sara de Melo, Daniel Choma e Tati Costa.
Transcrição: Tati Costa. Fotos e editoração: Daniel Choma.
Joaquim de Felipe nasceu em Planaltina-GO, dia 06 de setembro de 1956.
Domingos: O senhor é natural de onde?
Joaquim: Eu sou nascido numa posse que tem aqui no município de Planaltina, Goiás mesmo. Lá chama Posse, Goiás. Então é município de Planaltina, Goiás.
Domingos: Como é que foi a infância do senhor lá?
Joaquim: Trabalhando desde criança, trabalhava na roça. Na época que eu fiquei rapazinho de dez, doze anos, eu não gostava de Folia não. Nós éramos três irmãos, só um que gostava e dois não – eu e o mais velho não gostava. Aí o outro ia, chamava nós e nós falava “não, nós não vai não, nós vai se for pra forró, essas coisas.” Dançar nós ia, mas pra Folia não. E depois com os pais, que foram indo, chegava e conversava… Depois de mais tempo, eu estava com uns dezenove anos, aí ele conseguiu levar nós uns dias pra Folia. Naquela época era muito rígido. Criança, rapaz, pessoal novo, igual eu cheguei com dezenove anos, não podia participar de nada, que os guias antigos não aceitavam. Pra eles era aquele negócio que Cristo teve os doze apóstolos… Então, Folião também só era doze naquela época. Então você chegava e só podia ficar olhando, só assistindo, mas participar não podia. E aí a gente foi começando a participar assim, só olhando. Porque não podia participar, pois também não sabia fazer nada. Aí meus tios, porque meus tios já eram da Folia, um era regente e tinha outros que eram guia… E através do conhecimento que a gente tinha com os pais da gente, eles foram cedendo aos pouquinhos, pra que a gente pudesse participar. E a gente tomou gosto pela coisa e começou a participar, todos os três. Aí formamos um grupo de Catira e eu aprendi a cantar Catira. Tinha um amigo meu que já sabia, mas ele era sozinho e aí eu fiz parceiro com ele. E aí a gente veio e foi girando as Folias lá da zona rural, depois viemos pra Planaltina fazer apresentação aqui. Porque naquela época tinha no final da festa – igual vai ser sábado que vem – tinha uma participação à noite de frente à matriz, que eram os grupos de Catiras de todas as regiões, que vinham dançar pra mostrar a sua Catira. Porque era diferente, cada um era diferente do outro, então vinha pra mostrar. E por aí foi tomando gosto. Domingos: E o senhor teve um mestre lá nessa época?
Joaquim: Que me ensinava a cantar Catira, teve. Foi o Luiz, mas ele hoje mora lá pro lado de Formosa. Também não foi muito tempo. Depois que eu passei a guiar Folia ele também mudou e aí a gente nunca mais cantou junto não. Mas aí apareceu outras pessoas, outras pessoas que cantavam. Lá tinha várias pessoas que cantavam, mas quem me ensinou mesmo na verdade foi ele. E aí eu fiquei cantando Catira, cantando Catira, sempre mais outra pessoa. Depois teve um dia em que a gente foi pra uma Folia lá pro tal de Mimoso. Lá tinha um guia bem velho, chamava seu Possidônio, e ele um dia chegou pra mim… Nós ia pra Folia mas eu só sabia cantar Catira, não sabia nada. E o velho ficou meio doente. Aí chegou um dia e ele chegou pra mim e falou: “ó, essa Folia aqui eu guio todo ano, mas como ano que vem eu não vou voltar porque eu já morri, então essa missão quem vai ser o guia agora é o Joaquim”. Eu ainda questionei com ele: “moço, eu não sei fazer nada, como é que eu guio”? Porque na verdade da cantoria eu não sabia nada, eu só sabia cantar Catira. Ele falou: “não, mas essa noite eu tive um sonho que o Divino me falou que é você que é pra tomar conta disso aqui”. Moço, naquela hora até faltou sangue em mim, porque você chegar numa multidão de gente daquela e você não saber fazer nada. E ele falou: “não, mas o ano que vem é você, eu não venho mais, estou te falando que o ano que vem eu não venho mais e essa responsabilidade é sua, que foi o Divino que pediu pra eu passar pra você”. E eu fiquei o ano todo preocupado, pedindo a Deus que o velho não morresse, pra não chegar aquele dia e ser tão difícil pra mim. Quando faltava três meses pra Folia o velho morreu. E aí eu fui com a cara e a coragem, foi Deus mesmo, o Divino. E consegui guiar a Folia, foi a primeira Folia que eu guiei. Foi muito difícil realmente pra gente que não sabia nada. Foi complicado, mas daí pra cá eu acho que foi o Divino mesmo que abriu as portas, nunca mais parei de guiar Folia. Só essa de Planaltina vai fazer 27 anos que eu guio essa Folia. E da zona rural eu nem lembro, porque eu morei muito tempo lá na zona rural, guiei muitas Folias lá. Depois na cidade, em 1979 eu mudei aqui pra Planaltina. Mas você está aqui e continua guiando Folia na zona rural, porque o pessoal vem e chama a gente pra guiar a Folia. Porque já confia em você, então estamos aí nessa luta até hoje. Tomou gosto pela coisa e eu gosto da Festa do Divino. E meus tios tudo participavam, meu pai… Então eu segui a tradição da família.
Domingos: Como que era naquele tempo, quando o senhor começou?
Joaquim: Na época em que eu comecei, era bem difícil… Porque é igual eu te falei: os mais velhos não davam oportunidade; eu aprendi foi mais em casa, porque na Folia você não tinha como aprender. Se você quisesse entrar, por exemplo, num Catira, o regente que era o administrador ia lá e tirava a gente: “Você não pode, você não sabe”. Então o que eu via naquela época era muito difícil, porque não tinha oportunidade para os jovens aprenderem. Que hoje eu dou oportunidade pra qualquer pessoa. Tem vezes que a gente dá aula aqui pras pessoas aprenderem. Hoje falta é gente querendo aprender, porque nós está aqui direto pra ensinar, eu o Marcos, o grupo… Tem um grupo: Unidos na fé. Mas eu acho que as pessoas hoje gostam mais de badalação. Então realmente é poucas pessoas que a gente encontra que quer aprender. Então naquela época foi difícil porque eu aprendi em casa, porque na Folia não podia. Você não podia transportar nem uma moça. Não podia, não podia namorar porque se namorasse você tinha que pagar multa. Se fosse mais de uma namorada eles pegavam a divisa e o lenço seu, pregava na bandeira, você não podia ficar. Então era muito difícil, não podia transportar uma moça na garupa do cavalo, era proibido. Mulher não podia participar, mulher não podia dançar Catira, mulher não podia cantar que os antigos não aceitavam – era só os homens. E inclusive eram só os homens mais velhos, porque não tinha oportunidade de os novos aprender. Por isso que os foliões acabaram, foi acabando… Então eu fui tomando gosto pela coisa e depois vi que algumas coisas estavam erradas. Então, quando eu tomei a frente da coisa mudei algumas coisas da Folia que tinham que ser mudadas, porque na cabeça da gente era errado. Chegava no pouso, eles diziam que tinham que pedir um agasalho pro dono do pouso, se podia pousar, agasalho pros folião… Mas era o último canto que eles faziam. Eu achei aquilo super errado, portanto, em 1985 eu mudei. Eu passei a pedir o agasalho, o pouso, na hora que chega a Folia.
Você tem que pedir na hora que chega. Agora, depois que já chegou, já jantou, outros já até dormiu, outros foram embora, você está pedindo agasalho pro dono da casa? Não precisa mais. Até gente que tinha que ir embora já foi…. Hoje não, nós chega na fazenda, nós pede na hora. Então essa foi uma mudança que eu fiz. Esse ano eu vou mudar outra coisa que eu também achava errado… Porque chega na Folia, pede o agasalho e depois a próxima é cantar lá no cruzeiro. O quê que o cruzeiro está pedindo? É padecimento de Cristo, porque ele padeceu, foi pra cruz, morreu, ressuscitou. Entendeu? Mas toda vida eu achei que é errado, porque como é que você vai contar um padecimento sem contar o nascimento? Então essa Folia agora já vai ser diferente, primeiro nós vamos contar o nascimento que é lá no altar, pra depois vir pro cruzeiro cantar o padecimento. Como é que você vai cantar a morte de Cristo sendo que você não contou quando ele nasceu? Achei errado e acho errado. E esse ano eu conversei muito aqui com as pessoas, porque é uma coisa que você não pode mudar radicalmente também, pode ter muita repercussão contrário. Então esse ano nós fez novena o ano todo e nessas novenas a gente veio tratando disso e todo mundo aceitou, concordou que realmente não está certo. E esse ano agora já vai ser diferente. E por aí vai, muitas coisas que a gente mudou, a gente acha que mudou pra melhor. Outra coisa é que os antigos faziam assim que chegava no pouso da Folia, fazia o oito de conta com os cavaleiros. Que naquela época tinha uma superstição que se cruzasse a Folia, a bandeira passasse num lugar e viesse, passasse, fizesse uma cruz, morria um folião. Mas tudo era superstição. Sabendo que eles todo dia que eles faziam a Folia eles cruzavam, várias vezes, três vezes eles cruzavam a bandeira… E diziam que não podia cruzar porque senão morria. E não tinha nada a ver, foi coisa que eu mudei também, porque falei pra eles: “isso é superstição porque todo dia que vocês chegam com as Folia vocês cruzam a Folia e nem vê”. E muitos guias mais velhos na época me criticou e depois passado um tempo veio me dar os parabéns que tem outros guias hoje já velhos que não vai, mas fala: “você está certo, vai em frente”. Porque realmente na época a gente tinha uma noção e hoje a gente tem outra. Porque o povo tudo abraçou que estava certo. Então acabou ficando agora da maneira que eu fiz.
Domingos: E o senhor cria os cantorios também?
Joaquim: É, isso tudo é repente na hora, a gente faz moda… Quer dizer, isso não é pra qualquer um, porque tem gente que sabe cantar a moda, mas ele não sabe fazer a moda. Então eu já até perdi a conta de quantas modas que eu já fiz. E cantorio é repente, você tem que fazer na hora, não tem como decorar. A única coisa que é decorado na Folia é o bendito da mesa, agradecer a mesa onde você jantou, almoçou. Esse é meio decorado, mas tem gente que ainda canta diferente. Agora as cantorias não, porque cada cantoria é diferente da outra. Se você chega no cruzeiro é padecimento; se você chega no altar é nascimento. Então não tem como você cantar igual você cantou num lugar, cantar no outro. Então não tem como ser decorado. Então é isso aí, a gente faz ali na hora, tem que ser feito na hora. É um dom mesmo que Deus dá, porque se não for dom, quem não canta com dom não pode ser guia de Folia, porque se ele não tiver o dom de fazer os versos na hora fica complicado. Isso acho que é um dom que Deus deu mesmo, porque se não fosse… Porque muitas vezes eu vejo pessoa falar, “mas eu quero ser um guia de Folia”. Não é você falar que quer ser um guia de Folia, você tem que nascer com aquele dom. Se não for você vai tentar, tentar e vai ficar em vão, porque não vai conseguir, sem dom não consegue. (Continua…)