Ivo Amancio
- seção: entrevistas
“Eu acho que pra fazer um instrumento
tem que colocar sentimento também nisso.
Não é só na hora de tocar, é na hora de construir
– também tem que ter sentimento.”
Entrevista com o gestor, músico e luthier Ivo Zacarias Amancio, morador de Taguatinga-DF.
Encontro realizado em sua residência, em Taguatinga Norte-DF, dia 10 de fevereiro de 2018.
Entrevistadores: Domingos de Salvi, Sara de Melo, Daniel Choma e Tati Costa.
Transcrição: Tati Costa. Fotos e editoração: Daniel Choma.
Domingos: Ivo, você é natural de onde?
Ivo: Eu sou natural de Minas Gerais, município de Presidente Olegário.
Domingos: E o senhor viveu lá até quando?
Ivo: Bom, eu vivi lá na época da infância, da adolescência, então eu morava na fazenda. Era uma região muito rica na cultura musical.
Domingos: O que lembra de lá?
Ivo: Ah, eu me lembro de muitas coisas. Inclusive agora nós voltamos lá e minhas irmãs foram até a fazenda onde a gente vivia. Até fotografou alguma coisa lá… Então pra gente é muito emocionante ver uma coisa que foi construída por nós que fez parte da vida da gente. Eu me lembro de muita coisa. Eu estou sempre voltando lá na minha região e participando da Folia de Reis lá.
Domingos: E nessa época da infância já tinha Folia lá?
Ivo: Já, já tinha. Aliás, lá tem esta tradição das Folias de Reis no alto Paranaíba, parece que é a região nacional das Folias de Reis. Alto Paranaíba, pra região de Patos de Minas.
Domingos: E o senhor costumava acompanhar as Folias?
Ivo: Não, naquela época não. Eu voltei a acompanhar agora, quando passei a construir algumas violinhas.
Domingos: Chegou a ter algum contato com viola ainda lá?
Ivo: Agora ultimamente sim, aliás eu estou levando as violas pra divulgar. E, claro, participar do evento grandioso que é a nossa cultura lá da Folia de Reis.
Domingos: E o senhor veio pra Brasília quando?
Ivo: Eu vim pra Brasília mais ou menos há uns quarenta anos. Então já tenho uma história aqui, não é?
Daniel: E como era Brasília quando chegou aqui?
Ivo: Brasília era um pouco agitada, naquela época foi em 1978, 79… Então a vida aqui era um pouco diferente. Hoje tem mudado muito, inclusive nessa nossa cultura da música raiz, da viola que Zé Mulato e Cassiano são veteranos. Inclusive, acho que vocês conhecem a história deles, que eu também já escutei… Na época, quando eles pegavam ônibus pra fazer as apresentações nas rádios, que era, segundo eles, de madrugada. Só tinha esse espaço de madrugada. Então quando eles entravam no ônibus, segundo eles, o pessoal ia tudo pra trás, ou então tudo pra frente, então nunca ficavam junto com eles porque não gostavam muito desse tipo de coisa. Fazia essa separação, pois não conhecia essa cultura. Hoje, graças a Deus, por insistência deles ainda estão e fazendo sucesso… É um exemplo pra gente.
Daniel: E o senhor chegou pra trabalhar em quê?
Ivo: Ah, bom, eu vim porque meu pai veio de nossa região. É aquele negócio: você tem a família e ali às vezes não te comporta, não tem educação, saúde, enfim, essas coisas. Então nós viemos pra Brasília porque a gente achava que aqui seria… Naquela época, no início de Brasília praticamente… O local aqui prometia muito. Então viemos pra cá pra trabalhar, estudar e acabou que fomos ficando aqui até hoje. A maioria dos irmãos, somos onze irmãos, a maioria está aqui.
Daniel: Era muita poeira?
Ivo: É assim, na verdade quando nós mudamos pra cá nós já mudamos pra um lugar que já tinha certa infraestrutura. Mas tinham setores aqui que era terrível, muita poeira, muito vento, muito frio, nessa época fazia muito frio. Hoje o clima está mais estabilizado.
Domingos: O senhor chegou vindo pra qual cidade?
Ivo: Eu vim pra Taguatinga mesmo, eu cheguei em Taguatinga sul. E aí casei e vim pra cá, Taguatinga norte. Trabalhei numa empresa do GDF que era a Ceasa e aprendi muito – a gente está sempre aprendendo. Aprendi muito, depois saí e fui trabalhar como autônomo, fiquei oito anos como autônomo. Aí me concursei novamente, hoje eu sou empregado da Companhia de Água e estou prestes a aposentar também.
Domingos: E quando o senhor veio pra Brasília, a chegada aqui, foi difícil a adaptação?
Ivo: Ah, com certeza. Sempre quando você sai de um local onde você tem aquela convivência com os amigos, enfim, os seus parentes… Então a gente estranha, mas com o tempo você vai acostumando. Vai construindo e hoje pra mim não é problema mais, graças a Deus está tudo em paz, duas culturas, cultura mineira e a cultura aqui do DF, que ela é muito mista.
Daniel: E tinha gente de toda parte?
Ivo: Ah, com certeza, nordeste, Minas, São Paulo, enfim, acho que todo o Brasil tinha um pedacinho dele aqui.
Domingos: E esse contato, com as pessoas, o senhor tinha já tinha alguma relação musical?
Ivo: Aqui em Brasília não. Eu não cheguei a conhecer pessoas do meio, não. Eu vim na verdade começar a mexer com instrumento… Porque lá nas Minas Gerais a gente fazia já. É, mexia com um pouquinho de violão, porque a gente gostava. E aí vim pra cá, pra Brasília, e depois com um certo tempo que eu comecei a pegar numa violinha. E aí pensei: vou construir a minha própria viola e de lá comecei. Hoje acho que eu estou aí com mais de sessenta violas já feitas, porque parece que torna um vício isso aí. Só que pra mim é um vício prazeroso, você construir uma viola e depois você pegar esse instrumento e ver a questão da afinação. Porque não basta simplesmente fazer o instrumento, tem que fazer pra ele ter um timbre e afinação.
Domingos: E com quem o senhor começou a fazer violas, quem deu as primeiras dicas?
Ivo: Pois é, na construção do instrumento, hoje com a internet… Então a gente faz umas pesquisas, e com o conhecimento que tenho com madeira… Porque eu, lá nas Minas Gerais, já mexia com madeira. Meu pai era carpinteiro, então eu estava sempre acompanhando ele. Quando morava na fazenda eu fazia umas cangas de boi. Procurava fazer aquelas cangas mais difíceis, que são as mais curvadas. E fazia descaroçador de algodão, que antigamente fazia com duas munhecas – munheca é aquela coisa que faz girar a moenda pra entrar o algodão. Então eu passei a fazer com a engrenagem uma munheca só. Então uma pessoa sozinha, ela fazia todo aquele trabalho. Então eu comecei lá. É da família, meu avô era artesão e um tio meu fazia carro de boi. A minha inspiração com relação à viola, a construção da viola, veio quando eu estava enfermo. Eu tive um problema no pé… Porque eu joguei muita bola na época lá em Minas Gerais e nunca tive problema com fratura, essas coisas. E aí fui jogar um ping-pong aqui, aí virei o pé e fraturei. Fiquei enfermo, sem fazer nada. Aí eu já tinha uma viola que ficava na casa do meu irmão e peguei essa viola e comecei a tirar uns acordezinhos, umas notinhas… E passei a ter gosto com o instrumento e então comecei a construir.
Domingos: E nas escolhas da madeira que o senhor utiliza, tem madeiras aqui do cerrado?
Ivo: Tem, tem. Inclusive eu tenho duas, uma viola está em Minas e a outra está comigo aqui, posso depois te mostrar. Tem uma madeira aqui do cerrado, de fato do cerrado, que é o vinhático, madeira amarela, madeira de lei, uma madeira que inclusive a gente compara ela com a aroeira, na questão da resistência, com o tempo. É uma madeira muito boa e eu gostei dela pra fazer o instrumento, lateral e fundo eu recomendo.
Domingos: Pra tampo tem alguma do cerrado?
Ivo: Do cerrado, que eu conheça, não. Nós temos aqui a caixeta, que é uma madeira que eu não sei de qual região que ela é. Mas a caixeta é boa madeira, agora eu não sei exatamente se é do cerrado ou de uma outra região.
Domingos: E das violas que o senhor fez, a primeira viola o senhor ainda tem?
Ivo: Essa primeira viola eu tive um probleminha e aí desfiz dela. Na verdade, fiz uma reconstrução, eu reconstruí ela. Tem até uma história engraçada dessa viola porque, na época… A primeira viola que eu fiz, eu peguei uma madeira que a gente já tinha. Que a minha mãe tinha um baú… Que antigamente quando se casava eles faziam aqueles baús, chamam de caixa, pra colocar roupa. Então minha mãe tinha essa madeira lá. Essa madeira, a origem dessa madeira foi a seguinte: antes do meu pai casar meu avô serrou essa madeira, que é um cedro vermelho, e aí quando meu pai casou o meu avô deu essa madeira pra ele construir essa caixa. E aí quando, nessa ocasião eu pensei, vou fazer um instrumento, e vou fazer com uma madeira bem especial, porque ela era super especial. Aí fui lá, falei com a minha mãe, ela me cedeu uma tábua. Peguei uma ferramenta muito até grosseira, meu pai me ajudou a serrar essa madeira, a abrir, e eu construí essa viola aqui que é do cedro vermelho. Então essa é a origem dessa madeira. Tem mais ou menos uns oitenta anos que foi serrada essa madeira. (Continua…)