Aparício Ribeiro
- seção: entrevistas
“A viola é feiticeira.
Você escutou um batido desse aqui…Você fala:
– É hoje!
– É agora!
– É amanhã!
– É depois de amanhã!E pronto.
Viva a viola!
A viola é importante, não é mesmo?”
Entrevista com o músico Aparício Ribeiro, morador de Taguatinga-DF.
Encontro realizado em Águas Claras-DF no dia 19 de setembro de 2018.
Entrevistadores: Domingos de Salvi, Sara de Melo, Daniel Choma e Tati Costa.
Transcrição: Tati Costa. Fotos e editoração: Daniel Choma.
Domingos: Então, Aparício, nós vamos fazer uma prosa sobre a sua biografia, sua história com a viola…
Aparício: Só não vou contar os segredos pessoais! [Risos.]
Domingos: Tranquilo! Você é natural de onde?
Aparício: Patos de Minas, uma cidade aqui no oeste de Minas Gerais, na região do alto Paranaíba. Cidade boa, atualmente. Na época em que eu nasci era uma pequena cidade de uns trinta mil habitantes, por aí, em 1946. Depois da guerra, meu amigo. “Sou mais antigo do que o rascunho da bíblia”! [Risos.]
Domingos: E quais são as primeiras lembranças que você tem lá de Patos de Minas?
Aparício: As primeiras lembranças em matéria de música, claro. Ou não? Todas?
Domingos: As primeiras lembranças, todas…
Aparício: Bom, Patos de Minas antigamente… Na época tinha os córregos de água limpinha, a gente ia pescar lambari, pescar piaba – a gente não falava lambari, falava piaba. Brincar de filme de faroeste, filme de Tarzan, tudo ali na região da cidade que era muito boa e pródiga em córregos de água limpinha. E eu tinha um quintal muito bom lá em casa, quintal grande… O lote era grande, quintal grande, sabe? Tinha três qualidades de manga lá no nosso quintal, e era uma beleza. Eu fui criado comendo manga, comendo jabuticaba, comendo jambo. Não sei se você conhece jambo? E banana daquela banana-maçã que é a original, aquela primeira da roça mesmo. E por aí… E na juventude, na meninice, na puberdade, comecei a ouvir música no rádio. Tinha os programas de música caipira, muito bons, então ouvia Tião Carreiro e Pardinho, ouvia Nenete e Dorinho. Ê dupla boa! Ouvia Zilo e Zalo, dupla boa; ouvia Zico e Zeca, aquelas duplas da época [de ouro da música caipira]. Então fui criado ouvindo isso. Depois veio a jovem guarda, meu amigo, aí foi outra conversa… Na jovem guarda me atirei de cabeça mesmo. Andei tocando em alguns conjuntos, toquei guitarra, toquei baixo, cantei, foi uma festa, juventude foi muito boa. Viva a juventude!
Domingos: Seus pais trabalhavam com que lá em Patos de Minas?
Aparício: Meu pai era carpinteiro, mecânico, marceneiro, aquele homem que fazia várias coisas bem-feitas. Porque antigamente a pessoa primava pela quase perfeição, não é? Fazer bem feito justamente pra ter um nome elevado e não deixar cair a tradição da coisa bem feita. O meu pai era um caboclo assim. Mas infelizmente foi embora jovem, com 49 anos ele subiu. E o nome dele era Jovem. Jovem Cyrino Ribeiro. E ele foi embora jovem, eu tinha treze anos quando ele partiu. A minha mãe ficou só com nove filhos pra criar… Não é fácil! [Risos.] E conseguiu graças a Deus todo mundo pegou um caminho certinho, do jeito que pôde. E não tem nenhum músico. O que se interessou por música mesmo fui eu. A música sempre me influenciou, gosto de música. Não sou músico de formação, eu sou músico de ouvido, músico prático, como se diz.
Domingos: E tinha bastante passarinho?
Aparício: Tinha muito passarinho no quintal. O papa-capim era um passarinho abundante na época. Pintassilgo, canário da terra, tudo tinha na região ali, muito… Patativa. Até o curió, porque tinha um brejo lá perto, a gente brincava nesse brejo – era uma varzeazinha, a gente falava brejo. Tinha até curió. Então a natureza ainda estava muito preservada, naquela época as pessoas podiam caçar, podiam prender os passarinhos, não tinha essas leis que hoje tem. O meu pai mesmo, infelizmente, foi até caçador! [Risos.] Foi um dos predadores da natureza. Mas não era com aquela predação perigosa, era mais inocência, pra comer, às vezes a vida faz a pessoa procurar um alimento diferenciado porque falta verba pra comprar. Então, “vou ali no mato, trago umas duas ou três perdizes…” Nós vamos comer essas perdizes, não é? É por aí.
Domingos: E você lembra de ver viola e violeiros nesse período?
Aparício: Lembro. Eu entrei numa marcenaria pra aprender a profissão de lustrador de móveis. Eu estou fazendo esse movimento com as mãos pra mostrar como esfregava na madeira um chumaço de algodão, chamado “boneca”, impregnado do verniz feito de goma laca. E eu mexia também com passarinho, infelizmente fui um dos que prendiam passarinho. Mas naquela época era moleque ainda, não tinha a responsabilidade que eu deveria ter no futuro, conforme tenho hoje a consciência da natureza. Fazer troca ou “catira”, a gente falava catira, nada a ver com a dança…: troco esse passarinho a troco desse, você me volta isso, me volta aquilo ou vai na famosa “orelha”, na palavra. Numa dessas [“catiras”] apareceu uma violinha, (eu já estava querendo mexer com violão, tinha até um violãozinho). Uma viola, daquela meia regra, só tinha dez trastes. Vendi um casal de canarinhos, alguma coisa assim, e o camarada me deu essa viola como um troco, uma volta. Eu reformei essa violinha e comecei a fazer alguns toques. Eu tinha um amigo de infância que era cego. Mas ele tocava uma violinha, rusticamente falando, simples. Aí eu ia à casa dele pra ele me ensinar a fazer a afinação da viola. Lembro-me que foi uma das primeiras coisas que eu fiz na viola. Mas depois essa viola acabou indo pra uma outra troca de passarinho… [Risos.] Hoje, eu fico pensando: que pena! Mas, a vida tem que ser vivida conforme a oportunidade aparece. Apareceu oportunidade? Vai lá porque não vai ter outra! E viva o Brasil!
Domingos: E nesse período o pessoal já falava o nome da afinação, Cebolão? E o nome dos ritmos?
Aparício: Não, não falava. Naquela época, os violeiros não tinham informação. Cada violeiro esticava umas cordas achava o som bonito: “ô, aqui está bonito” e fazia as modinhas naquela afinação que ele inventou, um dos motivos da viola ter várias afinações é esse. Quer dizer, o ouvido era tão apurado que ele conseguia fazer aqueles intervalos tudo certinho ali. [Toca na viola.] Sem pestanejar inventava as modinhas dele e pra você copiar, tinha que fazer aquela afinação. E o processo vocês todos conhecem, é ouvido… Quem tem o ouvido bom consegue fazer muita coisa na música.
Domingos: Nesse tempo, como era para aprender viola? Era vendo, um ensinando o outro?
Aparício: É, eu me lembro disso. Nas Folias de Reis mesmo, tinham muitos violeiros e viola, sanfona, cavaquinho, um violãozinho. Ali a gente aprendia naquele ambiente simples… Como as coisas bonitas e saborosas mesmo: na simplicidade. Não é? Embora tenha a dificuldade da cantoria, de seguir de casa em casa pra fazer as louvações aos três Reis magos, a simplicidade da música, da Folia de Reis é uma coisa notável, é boa de ouvir. Viva as Folias de Reis! Eu fiz uma música sobre Folia:
[Toca na viola caipira a música instrumental “Viva Santos Reis”, de sua autoria.]
Aparício: Viva Santos Reis! Vou beber um golinho d´água aqui, já que não tem outra coisa! [Risos.]
Domingos: E lá em Patos de Minas tinha circo? Como era?
Aparício: Circo… Tonico e Tinoco no circo, Tião Carreiro e Pardinho no circo, Zilo e Zalo. Todos se apresentavam no circo e, eventualmente, nos parques de diversão. Mas aí tem aquela famosa história: a gente não tinha dinheiro nem pra defender uma geleia, comprar uma geleia pra comer, imagine pra pagar [entrada de] circo. A gente entrava debaixo do pano, traquinagem de moleque. Passava debaixo do pano. De vez em quando alguém pegava, jogava lá pra fora – a gente voltava pro outro local e conseguia [entrar de novo] ou ficava do lado de fora escutando o show desse pessoal. Os parques de diversões e os circos também apresentavam peças de teatro. Os parques de diversões tinham apresentações de artistas profissionais [e de amadores da cidade]. Muito bom muito bom! Viva a juventude!
Domingos: Então foi em Patos de Minas que você começou a sua vida musical?
Aparício: Sim, lógico.
Domingos: Aí você começa a tocar violão?
Aparício: O primeiro violão que eu comprei custou trinta… Trinta cruzeiros ou trinta unidades da época, eu não lembro se já era cruzeiro. Porque o mil-réis é de antes de mim, não é? Da época do Getúlio, depois mudou. Já era cruzeiro. Comprei um violão por trinta cruzeiros. Um violão artesanal, feito lá por um marceneiro, nem luthier era chamado, era marceneiro. Ele fez. Violão ruim, desafinado, mas valeu pra eu dar os primeiros impulsos na minha vontade de aprender o instrumento. E na medida em que o tempo foi passando eu arranjei um violãozinho melhor, e na década de sessenta eu acabei entrando num conjunto musical. Já sabia alguma coisinha e a jovem guarda eram as músicas mais simples… Mas antes da jovem guarda comecei com Nelson Gonçalves, Orlando Silva, aquelas valsas, aquelas canções antigas. Inclusive eu tenho os discos, meu pai era musicista amador também, não de tocar, mas de apreciar a música. Ele tinha uma coleção muito boa de setenta e oito rotações que eu herdei, está lá em casa. Cascatinha e Inhana, Orlando Silva, Vicente Celestino, Nelson Gonçalves e vai por aí. Então eu cresci ouvindo boa música, menino! Por isso é que a gente tem bom gosto, modéstia à parte, viu? Está bem? [Risos.] (Continua…)