Marcos Mesquita e Vitor Mesquita

“A memória de um país é uma coisa fundamental.
Uma das coisas principais do Brasil, da crise moral, é falta de memória. Saber a origem. Nós, como brasileiros, perdemos um pouco ou muito o fio da meada. Então a gente tem que buscar nos ensinamentos dos antigos.”

(Marcos Mesquita)

Entrevista com Marcos Mesquita, com participação especial de Vitor Mesquita, pai e filho que juntos formam o duo Viola Progressiva. Moradores de Brasília-DF.

Encontro realizado na residência de Vitor Mesquita, na Granja do Torto, Brasília-DF, dia 13 de fevereiro de 2018.
Entrevistadores: Domingos de Salvi, Sara de Melo, Daniel Choma e Tati Costa.
Transcrição: Tati Costa. Fotos e editoração: Daniel Choma.

Marcos Mesquita nasceu no Rio de Janeiro-RJ, dia 12 de junho de 1960. Vitor Mesquita nasceu em Brasília-DF em 16 de setembro de 1990.


Domingos: 
Marcos, você é natural de onde?

Marcos:  Bom, eu nasci no Rio de Janeiro, sou filho de gaúcho. Minha família toda é originária do Rio Grande do Sul. Criação minha foi toda… Nossa, dos meus irmãos, dentro de casa, criação de gaúcho. Alimentação, jeito de ser. E meu pai formou em medicina no Rio de Janeiro, depois que casou com minha mãe, trouxe lá do Rio Grande do Sul. Aí os filhos todos nasceram no Rio de Janeiro. Mas eu cheguei em Brasília com quatro meses de idade, em sete de outubro de 1960. Aí, vim crescendo junto com a cidade. E aqui a gente adquire um pouco de cada sotaque, fala oxente, uai, né? Então, aqui a gente une… Como diz o Xangai, é a cara do Brasil. Eu vim dentro dessa criação, nessa cidade bem multicultural e vim tendo a minha formação pessoal e cultural dentro disso. Em casa a gente ouvia de tudo também, meu pai sempre gostou de música clássica. Ele ouvia música clássica e a gente ouviu rock dos anos 70, aquela época, 70, 80, que é a nossa base, toda aquela música popular brasileira da época. Então, eu vim crescendo dentro disso tudo. Já com dezesseis anos comecei a ouvir música caipira também. Então, eu sou fruto disso tudo, da música, do jeito de ser.

Domingos:  Como era Brasília nessa época?

Marcos:  Brasília era como quase toda grande cidade. Era muito bom, não tinha grade nos lugares, em lugar nenhum tinha grade. Em 1981, por exemplo, uma casa na Ceilândia [tinha] murinho baixinho assim, com portãozinho, sem cadeado sem nada, você abria, não tinha grade. As casas na W3 não tinham grade em lugar nenhum. E Brasília era conhecida como uma cidade transcendental que favorecia a meditação. Então era bem isso, cheio de crianças. Tem gente que diz que na ditadura não tinha gente na rua, pelo contrário, tinha muita gente na rua, o tempo todo criança brincando… Cresci brincando na rua, futebol, era aquela gritaria de criança, gritando, falando palavrão, coisa de criança, xingando o outro, jogando bola. Então… É muito cerrado. Brasília, quando fizeram os eixos arrancaram quase todas as árvores, aí era aquele barro – depois que plantaram as gramas. Então Brasília era uma coisa interessante, se andava muito a pé, muito silêncio, pouco carro. Aquela coisa de capital realmente da esperança, de coisa nova e tudo. Não haviam governos populistas, era uma coisa interessante, Brasília.

Muito cerrado em volta… Muito pássaro… Era um sentimento diferente. Acho que na verdade era o sentimento diferente que existia em geral na cidade grande, era diferente do Rio de Janeiro, São Paulo, tudo era diferente. Era uma coisa muito legal, era um clima muito bom. A gente andava no meio das quadras, tinha alguns teatros antigos, por exemplo, Sesc da 913. Ali, por exemplo, vi Alceu Valença tocando, ali no Sesc Garagem – não era o Garagem era o teatro de cima ali. Aí circulava, andava pelo meio das quadras, via as pessoas andando pelo meio das quadras pra ir no teatro, na Aliança Francesa, encontrava com as pessoas. Era muito interessante. Tinha o projeto Cabeça, eram shows na rua. Então é isso, bicicleta, futebol. Brasília tinha a época da pipa. Todas as quadras, pelo menos as 10, 12, as quadras em volta, as 300, 100… Era época da pipa, todas as quadras soltavam pipa. Depois, época do peão. Época da bolinha de gude. Assim, bicicleta e futebol era o tempo todo… Isso era uma coisa interessante. Aí tinha a época do trote, você jogava o ovo na cabeça do outro – aí rolava em todas as quadras. Bete, época do bete. Brincadeiras que eu nem lembro mais, tenho vontade até de reaprender algumas brincadeiras, brincadeiras coletivas, que juntava dez, quinze crianças brincando… Aquelas brincadeiras coletivas.

Era interessante, era essa Brasília… Por exemplo, tinha muita gente do Rio pela transferência da capital, pelo menos quando a gente morava na 208 Sul. Na transferência da capital a gente veio do Rio e tinha muita gente do Rio ali também. A capital era no Rio de Janeiro, então ali tinha muita gente… Apesar que eu sei que veio muita gente do Nordeste, mas tinha mineiro também. Mas eu me lembro que ali perto do meu bloco os meus amigos tinham muito o sotaque de carioca. Mas tinha amigos também que vieram de Pernambuco. Logo no comecinho, isso nos anos 1960 pra 1970. Depois fui crescendo, já pra adolescência, adulto, aí tinha tudo que era gente, do Amazonas, Pará, Goiânia, mineiro, piauiense. Que eu saiba, em Brasília – pelo menos foi uma estatística que eu vi uns dez anos atrás -, o que tinha mais era piauiense e mineiro. E aí baiano, então… À medida que o tempo foi passando foi vindo mais gente de outros estados. Mas inicialmente veio todo aquele pessoal que trabalhava no Rio de Janeiro, na capital, funcionário público, ocupar os ministérios. Boa parte trabalhava no Rio, não necessariamente todo mundo era carioca, mas muito carioca, lógico, certeza. Meu pai era gaúcho, não tinha sotaque de carioca, mas veio. Mas eu me lembro alguns dos vizinhos nossos, aquele sotaque bem carioca mesmo, aquele jeitão.

Domingos:  Qual é sua primeira lembrança de ver alguém tocando viola caipira aqui em Brasília?

Marcos:  Uma época eu saí da 208 Sul e fui morar no Park Way, época em que os terrenos eram todos de vinte mil metros quadrados, era tipo chácara. As primeiras vezes que eu comecei a ver viola caipira, tinha um pessoal… Um amigo nosso, o Dedé, foi parte integrante do grupo Bueiro, que era mais ou menos a síntese do que rolava no Brasil e no mundo, que era essa coisa da fusão do rural com o urbano. E o que rolava muito, pelo menos aonde eu circulava, era essa coisa que surgiu na década de 70: Renato Teixeira, Crosby, Stills Nash & Young, Ruy Maurity, América, Cat Stevens. O próprio Bob Dylan juntava aquela música country com o rock… Aqui em Brasília também. Sá e Guarabyra, aqui no Brasil, com o rock rural. Fazendo um paralelo ainda dessa coisa com o mais urbano e o mais rural, por exemplo, eu considero também… Foi nos anos 1970 acho que surgiu o Alceu Valença também com aquela coisa meio pop dele com a música nordestina. Renato Andrade trazendo uma música sofisticada, mas com um sotaque mineiro bem forte. E o que rolava era isso, aqui. Esse grupo Bueiro, por exemplo, o Dedé tocava contra-baixo – não, no Bueiro ele tocava violão, guitarra e viola caipira. E o Dedé nessa época era amigo dos meus irmãos e ele ia lá em casa na mansão tocar. E pintou uma viola pra mim em 1975. E nessa mesma época meu irmão foi numa loja e comprou uma viola Rei dos Violões e trouxe pra casa. Ele não tocava, e quem ficou tocando fui eu. Toquei ela… Na verdade eu estava começando a tocar, influência de um amigo, estímulo de um amigo meu que deixou um violão lá em casa, o Dalton Godoy. Eu comecei em 1974 a tocar um violão, aí pintou essa viola, que é a que eu toco até hoje.

Mandei desempenar ela, gravo com ela, toco com ela em show. Na verdade, ainda não vi viola Rio-abaixo melhor que aquela. Com peso de grave, afinada e plugada, muito legal! Aí começou uma história com a viola em 1975 com essa Rio-abaixo. O Dedé também tinha uma Rio-abaixo igualzinha a minha. Rio-abaixo não, uma Rei dos Violões, só que afinada igual violão – tocava aquela “afinação natural”, que o pessoal fala. E esse grupo Bueiro, eu tenho uma fitinha dele. O quê que lembra o Bueiro? Lembra 14 Bis… Lembra o 14 Bis, mas só que foi bem antes do 14 Bis aparecer, entendeu? Sabe como eram as influências? Que eu acho que é um movimento todo que surgiu no Brasil… Que todo mundo fala Bossa Nova, Jovem Guarda, mas esse movimento dessa fusão do rural com o urbano eu acho que até hoje tem. O Almir [Sater]… Qual é o som do Almir, do Renato Teixeira, do 14 Bis mesmo? O meu som, aquele pessoal do Mato Grosso, Tetê Espíndola… Você vê que tem aquela coisa meio misturada, meio livre, não é? Então o que rolava em Brasília era isso aí. E a viola começou a aparecer aí. Em 1976… Depois eu parei, larguei essa viola um pouco lá e fiquei uns seis anos tocando violão clássico, aquela coisa toda. Aí depois reencontrei com a viola de novo. E encontrei com a viola de novo depois de ouvir um disco do Almir. Quando eu vi o primeiro solo, metade do solo de “Trem do Pantanal”, falei: “vou voltar A tocar viola, né?” Aí vem vindo e não larguei mais. De 1982 pra cá, tem algum tempinho. Quer dizer, 75 pra 76 fiquei tocando, compus umas músicas interessantes, sem saber nada de música – totalmente intuitivo. Uma afinação que eu não lembro mais era uma afinação que o Dalton me ensinou, bem diferente. Fiz umas músicas assim, mistura de música medieval com música oriental, como é que fala? Era uma coisa diferente. Mostrei pros amigos meus que tocavam violão clássico, eles ficaram impressionados com aquele som. Gravei numa fita e a fita sumiu… Ficou gravado em algum lugar no astral!  (Continua…)