Chico Nogueira

“Existe o oceano. Quando duas ondas se encontram e um pouco de água salta pra fora… A música é isso. É a água que salta pra fora do oceano. É o momento em que aquilo tudo que a gente tem dentro de si, sai do grande mar das coisas.”

Entrevista com o músico Chico Nogueira, morador do Guará-DF.

Gravação realizada no Orbis Estúdio, em Vicente Pires-DF, no dia 13 de dezembro de 2019.
Entrevistadores: Domingos de Salvi, Sara de Melo, Daniel Choma e Tati Costa.
Transcrição: Tati Costa. Fotos e editoração: Daniel Choma.

Chico Nogueira nasceu em Taubaté-SP em 18 de junho de 1967.

 

Domingos: Chico, você é natural de onde?

Chico: Natural de Taubaté, no interior de São Paulo, Vale do Paraíba. É uma cidade interessante porque lá nasceram Mazzaropi, nasceu Monteiro Lobato e também o Cid Moreira e a Hebe Camargo [Risos] Duas figuras interessantes e duas figuras nem tanto [Risos] Mas é uma cidade muito antiga, o nome, era uma aldeia de um povo que chamava Jeronimi, um povo de língua Tupi, da grande nação Tupi Guarani brasileira. E segundo os jesuítas que andavam por ali, que faziam esse caminho por terra entre São Paulo e Rio de Janeiro, se chamava antigamente Tabaetê, que em Tupi seria aldeia grande. Era uma aldeia de entreposto. E aí ela foi fundada então há quase quatrocentos anos com o nome de Vila de São Francisco das Chagas de Tabaeté. Bom, é uma cidade que por muito tempo foi a principal cidade do Vale do Paraíba, desse corredor entre São Paulo e Rio [de Janeiro], corredor por terra. Fica no Vale do Paraíba porque fica entre a Serra do Mar e a Serra da Mantiqueira. Naquela região de vale ali. E foi uma cidade muito central, pela maior parte do tempo que existiu enquanto cidade ali foi a maior cidade do Vale do Paraíba e na época do primeiro ciclo do café no Brasil também foi uma cidade de muita importância. Tanto que a família do Monteiro Lobato mesmo ficou rica e ganhou título nobiliário por conta do café que eles plantaram ali. Sistema que esgotou a terra, aquela história que a gente conhece. Bom, então é isso, nasci lá em Taubaté que é uma cidade interessante porque na minha opinião Monteiro Lobato é uma figura muito interessante, tem histórias muito interessantes contadas a partir do imaginário local ali, o imaginário caipira local. Pra mim quem conta as histórias mais interessantes de lá é o grande herói do cinema brasileiro que é o Mazzaropi. Uma pessoa que tinha o estúdio lá e os primeiros filmes, parte dos filmes dele eram filmados numa cidadezinha que ficava entre Taubaté e uma cidade próxima no litoral de São Paulo que é Ubatuba. Uma cidadezinha que fica exatamente no meio do caminho entre Taubaté e Ubatuba que se chama São Luiz do Paraitinga. E o Mazzaropi fazia as imagens dos primeiros filmes dele lá em São Luiz [do Paraitinga], era o cenário, as locações do Mazzaropi quase todas eram lá em São Luiz do Paraitinga, essa cidadezinha. Então por conta disso o imaginário caapora, caipira, esse imaginário que está ligado a esse modo de produção, esse modo de entender a vida dos primeiros habitantes do Brasil é muito forte no imaginário das pessoas lá e não à toa é a crítica daquele que era ligado às famílias mais ricas, mais tradicionais do Brasil, que é o Monteiro Lobato. O pai do avô dele era Visconde, Visconde do Tremembé, o pai, a família dele toda muito rica então criticam o modo de produção que eles chamam de preguiçoso. Que naquele primeiro livro que ele fez ele fala do Jeca Tatu, que é uma personagem lá de Taubaté. Com certeza o Jeca Tatu é uma coisa tratada de forma pejorativa, um jeito de falar do indígena, misturado com negro, com as pessoas que moravam ali na região e que tinham um modo de produção muito menos agressivo com a terra, que não causa aquilo que o ciclo do café causou que é aquela extenuação da terra que acontece no Vale do Paraíba e que a gente vê até hoje por lá. Era uma região extremamente florestal, de árvores gigantescas e foi totalmente devastada. Por isso, por não ter essa vocação pra devastação eram chamados de preguiçosos pela elite do Brasil. Então eu nasci nesse lugar. Como antigamente a maior parte das famílias, de uma forma ou de outra, que não moravam nos grandes centros, eram ligadas à agricultura a minha família também. Parte ascendência italiana, parte ascendência portuguesa e com certeza negros, índios também, ligados à agricultura, produção de alimentos. Aquela região ali do Vale do Paraíba, segundo pesquisadores da USP foi o primeiro lugar do Brasil onde se plantou aquele arroz que se planta no oriente, o arroz de várzea, arroz plantado dentro d´água. E nas margens de um afluente do Rio Paraíba do Sul que é o principal rio da região que é o Rio Una. Tem as primeiras várzeas registradas no Brasil de plantio de arroz. E segundo esses pesquisadores da USP foi um bisavô meu chamado Antônio Marçon que foi a primeira pessoa a plantar, desenvolver essa técnica de fazer canteiros de produção de mudas e depois o transplante da muda pra dentro da água, porque o arroz na água produz seis, sete vezes mais arroz do que o arroz plantado no seco. Por isso que os orientais plantam na água. Pra dar uma produção de arroz muito maior. Como eles gostam muito de arroz… Eles comem muito arroz, precisam de uma produção mais concentrada, intensiva.

Domingos: E esse imaginário, tudo isso que você falou de Taubaté influenciou a sua infância?

Chico: Certamente. Eu não morei só em Taubaté, a parte da minha família que é de Taubaté é a parte da minha mãe. A parte do meu pai é de outra cidade do interior de São Paulo que é de Franca. Também uma região de forte imaginário caipira, vamos dizer, região do segundo ciclo do café que é o tal do Oeste Paulista. Que também é uma região que foi devastada e hoje está devastada, a principal causa da devastação hoje é a cana-de-açúcar, produção de etanol e de açúcar. Mas aquela região de Franca também era uma região florestal impressionante e meu pai é de lá. Então eu morei em Franca, morei em outras cidades ali, Birigui, Batatais, daquela região do Oeste Paulista. Mas também morei uma parte da minha infância em Taubaté. E da parte desse tempo que morei em Taubaté, a casa da gente ficava num bairro de Taubaté chamado Chácara do Visconde, que era a cinquenta metros da casa onde nasceu Monteiro Lobato, a minha casa ficava a cinquenta [metros] e no final da rua ficava a casa onde nasceu Monteiro Lobato. Uma casa que antigamente era casa de fazenda, depois a cidade foi crescendo, Taubaté é uma cidade que ficou muito grande. Aí a cidade tomou conta das áreas que antigamente eram áreas rurais. O que acontece em quase todo lugar. Bom, esse imaginário da obra do Monteiro Lobato com um imaginário da obra infantil dele, em especial, as histórias de saci e tal eram coisas muito presentes na vida da gente. Minha família sempre foi muito incentivadora de leitura, quando a gente era menino minha mãe não gostava que a gente assistisse televisão. Olha que sabedoria já naquela época. Não gostava que a gente assistisse televisão então a gente ou lia ou cantava, tocava. Em casa todo mundo canta. Meu pai e minha mãe se conheceram num coral, se conheceram cantando. Minha mãe é talvez a melhor contralto que eu já vi na minha vida. E meu pai um tenor muito interessante! Canta muito bonito, tem uma voz muito firme, muito afinada, os dois até hoje velhinhos. Atualmente eles moram lá em Ubatuba, que é a cidade lá do litoral de São Paulo. Então esse imaginário caipira sempre foi uma coisa muito forte nas coisas que a gente vivia, mas claro que como todo menino do Brasil, claro, a gente também sofre influência das outras coisas. Mas eu pessoalmente, por exemplo, desde muito moço eu nunca gostei de rock por exemplo. Pra mim tem uma coisa muito clara, hoje até que sou extremamente mais condescendente com isso. Entendo que a música tem menos fronteiras. Mas pra mim uma coisa sempre foi muito clara, nós vivemos numa guerra cultural. Vivemos numa guerra cultural que se caracteriza pela imposição de valores culturais. E nessa guerra cultural pra mim o rock sempre pareceu capitulação. Sempre pareceu que de alguma forma a gente estava entregando os pontos, entregando território pro inimigo. Até porque o rock, uma coisa é o rock dos primeiros momentos, enquanto música negra, música periférica… Depois o rock quando se torna produto comercial, a partir dos grandes selos, produzindo grandes bandas, em turnês mundiais, essas coisas. Pra mim sempre pareceu que era uma coisa que não estava gratuitamente aí. Então eu tinha um pouco de resistência a isso. Tenho alguma resistência até hoje principalmente por aquilo que se chama de pop rock. Mas eu sei que também na verdade isso pode acontecer com qualquer música e eu entendo que as origens do rock lá onde ele começou de alguma forma tem uma ligação muito forte com aquilo que a gente chama de música caipira. E é uma coisa na minha trajetória até um pouco paradoxal porque eu não tenho uma ligação direta com música caipira, apesar do meu instrumento ser um instrumento caipira, apesar da minha pegada ser uma pegada caipira. Eu não sou uma pessoa que produza aquilo que tradicionalmente se chamaria de música caipira. Eu gosto de algumas coisas de música caipira, mas não é de tudo que eu gosto. No fundo eu gosto do que eu gosto e não gosto do que não gosto! [Risos] O que caracteriza uma chatice muito grande também, porque eu sou uma pessoa muito chata, eu acho, por conta disso. Porque daquilo que eu não gosto eu tenho dificuldade de gostar e eu acho que a música comercial, de uma forma geral, não só a música comercial do rock, mas música comercial brasileira, mesmo música popular brasileira que é mais comercial, é uma ou outra coisa que não fica chato porque tem os padrões, a pessoa compõe daí chega o produtor: “não, você não pode fazer isso, não pode colocar tal palavra, tem que… Esse campo harmônico que você está usando está muito empenado, está chato”. As pessoas querem uma coisa mais enlatada, não é? Enfim, a gente convive com isso, sobrevive nesse mundo do jeito que esse mundo é e temos que seguir. Mas eu assim, gostar eu não gosto, eu até vivo, estou aqui, não vou parar de estar vivo, mas gostar ninguém pode me obrigar a gostar porque eu não vou conseguir. Não é nem porque eu imponha que não possa é porque não consigo mesmo.

Domingos: E quais foram os caminhos que te levaram à viola?

Chico: Olha, eu comecei a tocar viola com um senhor chamado Seu Gonçalo, que era um sujeito que trabalhava lá nessa fazenda que era do meu bisavô Antônio Marçon, que eu falei que foi o primeiro a plantar arroz de muda. Ele trabalhava nas várzeas de arroz, era um senhor que a mãe dele, o nome dela era Maria Isabel, mas as pessoas chamavam ela de Maringá. Porque ela cantava aquela música [Cantarola] Maringá, Maringá. Aí ela ficou com o nome da música. Era uma senhora pretinha, pequenininha e ela teve esse filho, Gonçalo que era um homem grandão, muito forte. E esse Seu Gonçalo se chamava Gonçalo porque na gravidez da mãe, que a mãe só teve ele de filho. Era uma cosia bem incomum naquele lugar. Na gravidez ela passou muito mal e fez uma promessa pra São Gonçalo de Amarante e o Seu Gonçalo então recebeu o nome de Gonçalo. E ele tocava viola divinamente. Uma viola belíssima que ele tocava. E por conta dessa promessa da mãe, desde muito menino ele puxava as Folias de São Gonçalo que tinha no aniversário, no dia de São Gonçalo de Amarante. Depois de um tempo que a gente já não morava mais em Taubaté, minha família já tinha se mudado pra Mato Grosso, nós moramos em Mato Grosso, em Cuiabá, muito tempo, quando era adolescente morei lá. Quando a gente voltou lá pra ocupar o pedaço de terra que era do meu pai, da minha mãe, esse sítio que era dentro da grande fazenda do meu bisavô. Um dia chegou lá o Seu Gonçalo. Ele chegou com uma violinha que eu tenho até hoje que é uma viola Giannini da década de [19]30. Provavelmente feita pelo seu Tranquillo Giannini que era a pessoa que era dona da fábrica, por ele ou supervisionada por ele. Era uma violinha que a gente chama de meia-regra, é uma violinha que só tem dez trastos como as vihuelas e as violas tradicionais de Portugal, até hoje muitas são. E não tinha essa madeira que fica em cima do braço que a gente chama de trasteiro. A escala já era em cima do braço mesmo e ela vinha só até aqui, só tinha dez trastos. Essa viola aqui tem dezenove trastos. O que dá uma flexibilidade maior, uma permissão de fazer solos e acordes em outros campos, não só naquele campo das dez. Mas essa viola que era uma violinha usada pra Folia, violinha pequenininha, acinturadinha. Seu Gonçalo chegou com ela lá quebradinha. Aí meu pai era criador de curió e de bicudo pra torneio, essas coisas. E meu pai tinha lá um curió que não era assim tão bom [Risos] Tão cantador. Aí Seu Gonçalo gostou muito do curiózinho, falou: “Ô meu Deus, queria ter um curió desse.” Meu pai falou: “Eu troco nessa viola.” E trocou a viola no curió. Aí eu mandei reformar a viola, era bem moço, uns dezoito, dezenove anos. Aí fui aprender as primeiras notas lá com esse Seu Gonçalo nessa violinha, que era uma violinha de meia-regra. Aí eu sou químico de formação, depois disso eu passei num concurso na Petrobras pra trabalhar na refinaria de São José dos Campos, que é também no Vale do Paraíba. Aí quando comecei a receber salário eu comprei uma viola! [Risos] Comprei uma viola e a partir daí comecei a estudar mais, vamos dizer, mais dedicadamente a viola. Comprei uma viola Del Vecchio. Depois disso conheci a fábrica da Xadrez em Catanduva, em [19]91. Isso tudo em 86. Seu Gonçalo foi em 86. Entrei na Petrobras em 1987. Aí comprei a viola, comecei a estudar, no ano de 89 pra 90 eu conheci o Braz da Viola, que estava começando um curso de viola caipira no SESC lá em São José dos Campos. A gente ficou muito amigo. Começamos a conversar sobre viola, em 91 o Braz propôs a criação de uma orquestra de viola caipira que como eu tinha dito antes foi a primeira orquestra só de viola caipira do Brasil. Não é a primeira orquestra do Brasil, porque existia já em Osasco, em outros lugares, orquestras chamadas Orquestra de violeiros. Que tinha acordeom, violão, a maior parte era violão e tal. Como eu te disse, até porque mesmo nessa época não era muito comum você achar viola pra comprar. E quando você achava viola pra comprar não era comum achar encordoamento.  E quando achava encordoamento, método era uma coisa que não tinha de jeito nenhum. Tinha um método do Tonico e Tinoco, pra mim completamente indecifrável, não conseguia entender o que aquele método queria dizer. Era difícil porque eles tinham um jeito de afinar que falava tinha que afinar tal corda igual tal corda do violão, depois apertar em tal lugar pra ficar não sei o quê, fazer uma harmônica em tal lugar. Era difícil de afinar do jeito deles, tinha que decifrar, era um quebra-cabeça pra afinar a viola. Então não era uma coisa muito óbvia naquela época. O primeiro trabalho sistematizado de viola caipira que eu conheci foi o trabalho que a gente conheceu e nós ficamos encantados com aquilo. Foi o trabalho, o primeiro livro que o Roberto Corrêa lançou aqui em Brasília. Que eu conheci, não sei se foi o primeiro trabalho mais sistematizado. Existiam esses outros métodos, esse do Tonico e Tinoco, tinha um método do Tião Carreiro. Mas um parecia cópia do outro, era pouquíssima variação e pra mim muito difícil de compreender o que eles estavam querendo dizer. Até porque também apesar de eu cantar desde muito novinho, tudo mais, eu não tinha formação em música. Aliás, não tenho nenhuma formação em música, minha formação é totalmente autodidata. Fui descobrindo depois de fazer na prática as coisas, aí fui descobrindo. As coisas, a matemática associada à música. Eu tive, graças a Deus tenho facilidade com matemática, por causa da formação também. O jeito de pensar também talvez. Mas então a partir de comprar a viola e de começar a conviver com as pessoas e tal. Aí a gente conheceu essa fábrica maravilhosa que era a fábrica da Xadrez que é uma história muito bonita. Vocês conhecem, fizeram recentemente um trabalho sobre viola paulista. Vamos dizer, tem muito a ver com a história da produção musical caipira. Tem muito a ver com a história da sistematização da viola como instrumento brasileiro. A viola é um instrumento brasileiro porque ela foi, ao mesmo tempo em que hoje ela é uma arma de resistência contra a dominação cultural, por muito tempo ela foi uma arma ela mesma de dominação cultural com certeza. Por exemplo, eu contei essa história pro Roberto Corrêa outro dia. Alguns anos atrás, no ano de 97 eu fui fazer um curso na Espanha, aí tem uns parentes distantes da gente lá em Portugal, lá no Vale do D´ouro, onde faz o vinho do Porto lá, no rio D´ouro. Fui lá visitar esse parentes, aproveitei que estava ali, fui de carro até Cidade do Porto. Aí na Cidade do Porto eu entrei numa lojinha de instrumento musical e tinha uma viola lá que eles chamam de viola de arame. Que é uma viola de arame portuguesa, viola braguesa, viola amarantina, viola de arame. Até na época eu estava sem dinheiro, não comprei, mas me deu muita vontade de comprar uma viola daquela porque é uma viola de dez cordas, com uma cintura mais pronunciada e tal. Mas ela tinha na mão aquela mão de guitarra portuguesa, aquela mão de metal de guitarra portuguesa. Com micro afinadores, muito interessante a viola. Bom, a história da viola é assim, essa viola da gente nasce de um instrumento que foi criado pelos cristãos pra se, vamos dizer, libertarem conceitualmente dos instrumentos de origem árabe, por causa da existência do califado de Al-Andaluz, por oito séculos na Península Ibérica. Então os cristãos queriam inventar um instrumento que fosse diferente do alaúde, das rebabes, que eram as rabecas árabes. Então eles inventaram uma viola que eles chamavam vihuela que tinha o corpo parecido com essa, mas era menorzinha e que usava como o alaúde cordas de tripa. Eram dez cordas, até hoje na Espanha tem quem toque. Eu mesmo tenho uma vihuela aqui. Aí dessa vihuela espanhola, quando em 1492 Fernando e Isabel expulsaram da Espanha os mouros que ainda tinha por lá e os judeus, Portugal que sempre foi um país manhoso, mais dado, vamos dizer, a dar um jeitinho pras coisas. Recebeu grande parte desses mouros e judeus porque eles eram ou banqueiros ou artesãos de excelente qualidade. Eles estavam organizando as explorações e para eles interessava tanto os financiadores quanto os artesãos. E entre esses artesãos tinham excelentes metalurgistas. Pessoas que dominavam a metalurgia. E com o domínio da metalurgia Portugal começou a desenvolver uma coisa que criou a viola que é o arame. Eles foram capazes de desenvolver uma liga de metal que fazia um metal tão fino e tão resistente a ponto de servir de corda. Isso resolveu economicamente o problema das vihuelas e dos outros instrumentos porque os instrumentos de corda de tripa, pra dez cordas que você usa são dez bichos mortos. É caro. Não é uma coisa barata, não é toda tripa que dá… Tem um tratamento e a corda de tripa dura pouquíssimo. Ela não é economicamente viável. Já as cordas de arame são cordas que você leva quilômetros de encordoamento. Num rolo você leva quilômetros de encordoamento. Isso foi essencial para os jesuítas que vieram pra cá. Grande parte daquilo que os jesuítas chamaram de redução eles fizeram com base nas rabecas, que são a releitura das rebabes árabes e as violas, que são as releituras dos alaúdes, com cordas de aço, porque tinha quilômetros de encordoamento. Era muito mais fácil carregar, quebrou troca com facilidade, remenda. Nesse sentido, a viola, que é hoje um instrumento de resistência, ela começa como um instrumento de dominação. Vamos dizer, de dominação pelo coração mesmo. Com certeza as violas fascinavam os indígenas, em especial o povo Tupi. Os jesuítas não gostavam muito de quem não era Tupi. Mas os Tupis, tanto que até hoje lá em Ubatuba, onde minha mãe mora, ainda tem comunidades Tupis que têm lá, eles tocam viola, violão, rabeca. Ainda dessa época. Os Tupis de lá já não são Tupis que eram originários de lá, até porque lá em Ubatuba morava uma nação Tupi muito aguerrida que foi totalmente extinta em menos de cem anos que eram os Tamoios. Mas o que eles chamam mesmo de Guaranis, que moram lá na Serra da Mantiqueira, são Guaranis que vieram de povos que sobraram das reduções jesuíticas, que os jesuítas fizeram por toda América. Então é isso, a viola ao mesmo tempo era um instrumento de dominação que depois, por causa desse novo homem que foi nascendo, mistura dessas coisas todas, esse homem que foi nascendo também filho, em grande parte, dessa violência toda que foi a forma como o Brasil foi formado. Esse homem, ao nascer, fez nascer um outro instrumento que não é, por mais que se pareça, a nossa viola caipira não é a viola bragantina, não é a viola amarantina, não é a viola de arame, não é. Ela é um outro instrumento. Essa vez que eu estive lá no Porto a viola que eu encontrei na loja lá estava afinada numa afinação que a gente chama aqui de Cebolão. Cebolão em Mi, que era mais antiga. Estava afinada na loja, eu não afinei, peguei, ela estava afinada em Cebolão. Fiquei bastante surpreso. O dono da loja disse que era um sujeito lá da região que tinha afinado. Ao mesmo tempo me surpreende, mas ao mesmo tempo não me surpreende. Por exemplo, outra coisa que pouca gente sabe é que o violão do Robert Johnson, aquele blueszeiro americano, famoso, aquele negão que mandou pra ele fazer um violão todo de ferro, por causa do timbre e tal. Na ancestralidade da guitarra elétrica. O violão dele era afinado em Sol, uma afinação que a gente chama de Rio abaixo aqui. Era um Sol, em vez de ser com cinco cordas era um Sol com seis cordas. Que também é a mesma afinação do cavaquinho. Então essas afinações, ainda que elas sejam nossas, tenham peculiaridades que são nossas, elas também não são nossas porque nós somos nós, mas somos o que já fomos também. Nós somos esses que estamos aqui agora, mas somos também esses que viemos caminhando pelo mundo. Então a viola caipira tem forte, certíssima, fortíssima influência dos hindus que chegaram na Península Ibérica que são chamados lá de ciganos, gitanos, em Portugal, ciganos. E da música que vem com eles. Então a nossa música vem carregada disso tudo. Mas a viola caipira é para mim uma coisa especialmente bonita porque ela tem essa origem ibérica e tudo mais, mas ela tem uma pegada muito forte dos indígenas que moravam aqui e uma pegada fortíssima dos negros que foram tão injustamente sequestrados em suas terras e trazidos pra cá. Uma tragédia sobre a qual a gente não fala até hoje. A gente finge que não aconteceu a tragédia que aconteceu no país. Mas é assim, como dizia a música do Caetano: Quem descobriu o Brasil? Foi o negro que viu a crueldade bem de frente e ainda produziu milagres de fé no extremo Ocidente. Apesar da barbaridade, da calamidade que foi esse sequestro, que foi essa dizimação dos povos que moravam aqui antes. Apesar disso esse homem novo que foi nascido, que foi feito desse estupro, grande estupro tanto sexual, humano, material, moral. Esse homem nasce de forma surpreendente, nasce com belezas que são belezas muito marcantes que fazem a música brasileira ser essa coisa que é reconhecida no mundo inteiro, conhecida aí pela diversidade, pela grande riqueza. O que dizer da música brasileira? Até porque de que música brasileira nós estamos falando? Tem tanta música no Brasil. Tem muita música. Nós não somos um país. É interessante a gente entender que a colonização espanhola gerou uma quantidade gigantesca de países, enquanto nós geramos um país só. Interessante isso. Mesmo nessa imensa dor que foi a produção do nosso país, o nosso país se manteve um país só. Enquanto na América Espanhola são uma quantidade grande de países, cada um com a sua… Eu acredito que isso também componha esse homem e essa música, esse jeito de entender a musicalidade que se traduz, na minha opinião, de forma muito particular e muito rica na viola caipira.


Domingos: Sensacional, cara! Chico, você começa a compor a partir da viola, você já compunha?

Chico: Eu começo a compor a partir da viola. E começo a tocar, eu toco alguns outros, eu toco uma parte dos instrumentos de corda. Mas eu comecei a tocar com viola caipira. Quando era menino meu avô era violonista clássico, ele tocava violão clássico. Ele tentou me ensinar, mas eu não queria, eu queria jogar bola. Achava chato demais aquilo, falei: “Não, vô, não vou tocar violão, vou jogar bola.” Aí fui goleiro, cheguei a jogar em times. Quando eu morava em Mato Grosso eu cheguei a jogar em algumas partidas do profissional do Dom Bosco. Tinham três times em Cuiabá nessa época que era o Misto, Dom Bosco e Operário, em Várzea Grande. O Dom Bosco era o menor deles e o campo de treinamento ficava do lado da minha casa. Morava lá na 13 de junho, no centro de Cuiabá. Aí tinha o estádio Presidente Eurico Gaspar Dutra, era o “Dutrinha”. E era o lugar onde o Dom Bosco treinava. Aí eu jogava no time do colégio, um dia o cara me viu jogando e me chamou pra jogar lá. Eu gostava muito de jogar bola na época, joguei bastante futebol até me machucar, depois parei. Jogava mas não devia ser tão bom assim [Risos] Mas cheguei a jogar bola, gostava muito de jogar futebol. Aí meu avô me chamou pra tocar violão, mas não, é muito exercício, muita disciplina, eu acho que não dava conta naquele momento. Enfim, num certo sentido eu concordo sempre com o Paulo Freire, em quase todos os sentidos, eu não sei em que sentido eu não concordo. Mas ele fala: quando uma criança não é educada em alguma coisa, a educação falha em alguma coisa na criança, não é a criança que tem que ser questionada, mas o educador. Então eu imagino que alguma coisa naquele jeito de ensinar violão do meu avô fosse chato mesmo! [Risos] Talvez porque ele achasse que precisava ser chato. Eu não sei se a nossa formação cristã fez a gente incorporar que sem dor não tem ganho. No pain, no gain. Sem dor não tem ganho. Eu não tenho convicção disso não.  Pra mim isso é um mito que a gente criou, talvez porque a gente de alguma forma se apegue à dor. Até porque, voltando àquilo que eu tinha dito antes, a nossa história é uma história de dor pra caramba, muita dor. Dor levada a sério mesmo. Nós levamos a dor a sério. Então a gente acha que precisa ter dor em tudo que for fazer que é sério, precisa ter dor, precisa ter chatice. Eu estou cada vez mais desconfiado que isso é uma das mentiras que a gente cresceu acreditando nelas.

Aí o que acontece? Quando eu conheci a viola eu já tinha, mesmo quando eu morava em Cuiabá uma vez eu pedi pro meu pai. Falei: “Pô pai, compra uma viola pra mim.” Mas era muito difícil de comprar naquela época. Em Cuiabá nas lojas de instrumento se você quisesse uma viola você tinha que mandar vir de São Paulo e era caro. E a gente não era assim tão abastado. A gente vivia duro mesmo, a gente vivia com dificuldade, então meu pai falou: “Não dá pra comprar.” Então por isso que quando eu comecei a ganhar meu salário das primeiras coisas que eu fiz foi comprar uma viola. Mesmo ainda sem saber tocar direito eu comprei a viola pra começar um processo que eu acredito que seja assim. Porque instrumento é sempre necessário ter um tipo de namoro. Precisa ter alguma coisa que seja pra lá da disciplina por si mesma, seja uma coisa que envolva uma reciprocidade no instrumento. E na minha experiência pessoal, não sei se isso é uma norma, mas pra mim é uma necessidade. Talvez até porque eu não seja tão disciplinado, enfim. Então aí eu consegui, vamos dizer, com a viola chegar nesse grau de intimidade. Costumo dizer que na verdade quem me toca é ela, não sou eu que toco ela. Ela que me toca.  Porque eu gosto mesmo do som que é produzido, não só da viola que eu eventualmente faça, mas eu gosto do som da viola mesmo. Acho que o som da viola é uma coisa que eu sinto desde a primeira vez que eu ouvi. Quando eu escutava uma viola tocando eu sentia que me ligava a alguma coisa que eu não sabia de onde era e de onde vinha. E como aquilo tocava, da onde estava vindo aquela sensação. Eu tive a alegria e a honra de no ano de 2000 criar um grupo que viajou pelo Brasil, viajou pra alguns lugares do mundo. Um grupo que começou com teatro de rua, mas que depois, a partir da gravação do primeiro disco, foi se tornando um grupo de música mesmo, música tradicional brasileira que é o “Mambembrincantes.” Em 2006, nós fizemos algumas caravanas pelo Brasil, mas em 2006 nós fizemos uma caravana grande, nós tocamos em trinta e seis cidades do Centro Oeste. Mais duas cidades do Paraguai, duas cidades da Bolívia e uma cidade de Rondônia. A gente fez uma turnê bem grande mesmo e a gente viajou com um caminhão que se abria e se transformava num palco com o grupo. Nessa turnê a gente chegava então em cidades como Chapadão do Céu, Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul, Corumbá, Ladário. Chegava nesses lugares, mesmo em Puerto Suárez, Puerto Quijarro, na Bolívia. A gente chegava na cidade, abria o caminhão, montava o palco e tocava lá. E mesmo a gente tocando quase que cem por cento de músicas autorais, músicas da gente, músicas que não estão na grande mídia e tudo mais, a gente tinha uma quantidade muito grande de pessoas. A gente chegou a fazer, por exemplo, em Coxim a gente fez um show seguramente pra umas cinco mil pessoas numa cidade que tem sete mil habitantes. Em Chapadão do Céu a gente fez um show pra três mil pessoas numa cidade que tinha quatro mil habitantes. Então as pessoas chegam, eu tenho impressão, isso é uma coisa que eu sinto, que é por conta disso. Porque a viola toca em coisas da intimidade da gente que a gente não sabe exatamente de onde vem. Às vezes eu chego num lugar que a pessoa não me conhece, quando eu começo a tocar surgem expressões engraçadas, interessantes, do tipo: “Ê, saudade da roça!” Uma coisa assim [Risos] Como se de alguma forma a pessoa voltasse pra dentro de alguma coisa, uma ancestralidade anímica. Uma coisa que de alguma forma está contida no nosso DNA cultural. Se é que a gente pode falar disso, será que existe? Segundo Fritjof Capra o DNA é uma coisa que se compartilha. O DNA não é uma coisa imutável que você nasce com ele, a organização proteica do DNA vai se alterando ao longo da vida da pessoa. E vai sendo influenciada pelo meio. Então na compreensão dele, que é uma coisa que eu tenho impressão que é verdade, ele é uma coisa química, bioquímica, orgânica, mas é uma coisa cultural também. Ele é fruto do caldo cultural em que a gente está inserido. E eu tenho impressão que é por isso que a viola fala tão alto na alma da gente. Porque fala alto, fala alto na alma porque fala alto no corpo. Minha compreensão. É uma coisa que eu sinto, não tenho nenhuma pesquisa empírica pra embasar isso, mas é uma coisa que eu sinto.

Domingos: Você poderia tocar alguma coisa pra gente?

Chico: Posso!

[Toca na viola caipira e canta a música “Viola de navegar”, de sua autoria:]

O meu canto é de lua e de mar
Se ouve aqui se ouve em todo lugar
Se meu corpo é canoa no mar
Rema essa minha viola

De navegar
De navegar
De navegar êêê
Navegar
Navegar

Por sobre as ondas me dei ao mar
Nesta viola que é de navegar

Por sobre as ondas me dei ao mar
Nesta viola que é de navegar

O meu canto é de lua e de mar
Se ouve aqui se ouve em todo lugar
Se meu corpo é canoa no mar
Rema essa minha viola

De navegar
De navegar
De navegar êêê
Navegar
Navegar

Por sobre as ondas me dei ao mar
Nesta viola que é de navegar

Por sobre as ondas me dei ao mar
Nesta viola que é de navegar

Por sobre as ondas me dei ao mar
Nesta viola que é de navegar

Por sobre as ondas me dei ao mar
Nesta viola que é de navegar

Chico: Chama “Viola de navegar” essa canção. E não está gravada em lugar nenhum, vai estar gravada agora aqui a primeira vez! (Continua…)