Reinaldo Cordeiro

“Se eu fosse uma música, seria ‘Tocando em frente’. (…) Essa composição do Renato Teixeira e do Almir Sater mostra que cada um compõe a sua história, cada um escreve o seu livro da vida. Todos nós nascemos com um livro em branco. Eu é que escrevo a minha história.”

Entrevista com o violeiro Reinaldo Cordeiro, morador de Vicente Pires-DF.

Gravação realizada no Orbis Estúdio, em Vicente Pires-DF, no dia 15 de dezembro de 2019.
Entrevistadores: Domingos de Salvi, Sara de Melo, Daniel Choma e Tati Costa.
Transcrição: Tati Costa. Fotos e editoração: Daniel Choma.

Reinaldo Cordeiro nasceu em Taguatinga-DF em 23 de agosto de 1971.

 

[Toca viola caipira e canta a música “Viola”, de autoria de Antônio Victor e Saturnino Pereira:]

Viola é de madeira
Tuas cordas são de aço
Meu peito é de sentimento
Teu berço são os meus braços

Viola é rio de riqueza
Paixão feita em correnteza
De ponteios e cantorias
Viola é o poeta
Viola paixão secreta

Viola é poesia
No braço desta viola
Ganhei amor vida afora
Paguei doando alegria

No braço desta viola
Ganhei amor vida afora
Paguei doando alegria
Êêêê viola

Viola é o viajante
Cruzando muitas fronteiras
Viola é boi, é boiada
É terra, é chão, é poeira

Viola da minha palma
Viola marcou minha alma
Desde quando eu pequenino
Viola de riso e pranto

Viola que eu amo tanto
Viola foi meu destino
Dez cordas, dez juramentos
Viola dez mandamentos

Viola som genuíno
Dez cordas, dez juramentos
Viola dez mandamentos
Viola foi meu destino

Êêêê viola

Reinaldo: Boa moda, Antônio Victor.

Domingos: Quem é o autor?

Reinaldo: Antônio Victor. Antônio Victor é compositor da música “Operário vida e viola”, “Alma gêmea”, que Chico Rey e Paraná gravaram. 

Domingos: Reinaldo, você é natural de onde?

Reinaldo: Sou natural de Brasília. Nasci aqui em Taguatinga no Distrito Federal. Graças a Deus criado aí nessa cidade.

Domingos: Seus pais são de onde?

Reinaldo: Rapaz a minha família é uma mistura danada. Meu pai é paraibano, lá de Umbuzeiro, na Paraíba. Minha mãe mineira. De Uberaba. E eles se conheceram em Mato Grosso do Sul na região ali de Dourados, Deodápolis, Ipezal. Perto da fronteira, perto de Ponta Porã na fronteira com o Paraguai. Eles conheceram ali. Conheceram lá, casaram e vieram pra Brasília depois. Família nossa é toda montada! [Risos] Tem um pouquinho de cada parte do Brasil!

Domingos: Como era Taguatinga na sua época de infância?

Reinaldo: Rapaz era uma cidade começando, tudo começando é mais difícil. Uma cidade simples, bem simples, era uma cidade satélite já bem promissora e uma cidade da infância pobre, infância simples. Aquela infância de menino jogando, a gente chama de finca no chão, carrinho ficava brincando, bolinha de gude, soltar pipa, jogar bola na rua. Era uma infância bem simples aqui, a cidade veio sendo construída com o tempo. A parte de águas pluviais, esgoto, asfalto, tudo foi vindo. Iluminação veio, quando botaram luz na nossa rua nós brincamos até não aguentar mais. Porque pra gente era novidade poder brincar com a rua toda iluminada. Então Taguatinga foi crescendo e nós fomos crescendo juntos. Porque já nasci em Taguatinga bem no início. Então sou filho de Taguatinga. Então pude ver a cidade crescendo bastante.

Domingos: E você tinha algum envolvimento com música nessa época?

Reinaldo: Rapaz, eu sempre gostei de música. E cresci ouvindo Milionário e José Rico, Sérgio Reis, músicas do Tião Carreiro e Pardinho. A minha família sempre foi muito alegre, muito musical. Minha mãe tocava, fazia umas três ou quatro notas no violão, brincava um pouco, sempre tinha alguém que chegava em casa trazendo um violão, trazendo uma viola. Então eu sempre cresci ouvindo música. Principalmente a música caipira. Ouvia também, lógico, a Jovem Guarda. Estava tocando bastante, a gente ouvia bastante coisas. Eu cresci dentro dessa linha da música. Eu cantava músicas sem nem poder falar direito, eu cantava embolando as letras, já cantarolava. E cresci. Milionário e José Rico era de praxe ouvir. Tião Carreiro e Pardinho. Pra gente aqui na nossa região não tocava tanto, a gente não tinha tanto recurso. Mas sempre, depois veio Almir Sater, Renato Teixeira e eu comecei a entrar mais pra esse universo da música raiz. Conheci um pouco mais.

Domingos: E em Taguatinga nesse primeiro período vinham shows musicais pra cá?

Reinaldo: Ah, sim. Nós tínhamos uma feira que era muito boa, a FACITA Feira da Indústria e Comércio de Taguatinga. Era a maior feira da região. Então vinham os cantores a nível nacional. A feira era lotada. A exposição de todos os produtos da nossa cidade nós tínhamos lá. Eu me recordo de Chico Rey e Paraná fazer show e depois estar no povo ali andando. É muito bonito isso. Me recordo de uma vez que Sérgio Reis veio fazer um show, Chico Rey e Paraná tocaram e depois ele chamou eles pra voltar pra cantar a música “Operário, vida e viola” que é uma música do Antônio Victor. E chamou os meninos pra cantar de novo. Então Taguatinga tinha muita coisa boa. Vinha muita gente. As duplas caipiras, os cantores em geral, você tinha Zé Ramalho que vinha também, a Gretchen na época era um sucesso. Tinha muita gente boa que vinha pra Feira.

Domingos: Você se recorda se nesse período tinha algumas duplas, artistas de Brasília?

Reinaldo: Tinha: Princesa e Paloma, Clayton Aguiar, o próprio Chico Rey e Paraná, Zé Mulato e Cassiano era um nome que eu já ouvia, com treze, quatorze anos. Eu lembro que ouvi uma música deles, começou a tocar em rádio, era mais na AM, porque lá em casa minha mãe ouvia muito AM. Compadre Juarez Fernandes, era um programa, se você quisesse arrumar briga com ela, sumisse com o radinho dela, desligasse a briga estava feita. E tinha muitas, Princesa e Paloma como eu disse pra você, Clayton Aguiar. Tinha uma dupla muito boa Norivaldo e Cleonito. Era um das duplas que eu vi em Brasília de grande qualidade. Infelizmente um acidente, o Norivaldo veio a falecer. Foi a primeira vez que eu vi a turma de viola, de músicos de Brasília, todo mundo junto. Estava todo mundo no dia e foi marcante pra mim. Porque a gente menino, a gente fica olhando sem entender muito o que está acontecendo e todos os artistas juntos você tem uma dimensão muito grande do que é os artistas. Você acha que o artista está num patamar que ele é um ser diferente de todos os outros. Quando a gente é criança a gente imagina muito isso. Ali eu vi os artistas todos juntos, apesar de ser um momento triste pra mim foi fantástico ver a turma toda por perto. E foi um aprendizado. Eu tive a felicidade de cantar com o Norivaldo uma vez, era gurizinho, e ele falava pra minha tia, minha madrinha que mora lá na L Norte, mora aqui em Taguatinga, falou pra ela: “Ó, esse menino vai ser cantor.” Ah, isso pra mim, eu ganhei a vida! E até hoje eu lembro. Estou até tentando resgatar uma música deles na infância, tentando achar alguma gravação para ver se eu toco essa música novamente. É “O barquinho” só lembro do título da música. Mas é muito bom, teve muita gente boa, Brasília tem muita gente boa.

Domingos: O que representava o Plano Piloto nessa época, você ia pro Plano?

Reinaldo: A gente ia pouco. O Plano era o lugar dos ricos e aqui era a região dos pobres, era meio dividido. O pobre ia pra trabalhar lá pros ricos. Era mais ou menos assim que funcionava! [Risos] Tinha coisas muito boas no plano, a gente brinca assim, mas tinha coisas muito boas. Por exemplo, me recordo de assistir pela escola a gente ia assistir a troca da bandeira. Então tinha todo um trabalho. A gente ia passear no Parque da Cidade. Mas mais pela escola. Porque a região de Taguatinga era pessoas muito humildes que não tinham recursos para estar indo. Então depois de certo momento começou a ficar mais fácil pra gente ir. Mas era restrito, a gente tinha o quê? No Plano a gente tinha a Água mineral, a Esplanada [dos Ministérios] e o Parque da Cidade. Tinha três opções.

Sara: Piscina de ondas…

Reinaldo: Era, a piscina de ondas era o atrativo nosso. Nós tínhamos uma piscina, era bonito lá. Fazia parte do nosso dia a dia. Não é que fazia parte do nosso dia a dia, fazia parte da nossa vontade de ir lá. O dia a dia nosso mesmo era jogar bola por perto aqui, arrancar o tampo do dedo no asfalto! [Risos] Esse era o nosso dia a dia. E graças a Deus Brasília foi sendo democratizada pra todo mundo com o passar do tempo. Foi se quebrando isso. Hoje você tem facilidade, metrô, ônibus, você vai com facilidade. Mas é muito bonito, foi muito bom.

Domingos: E Taguatinga, teve um violeiro que a gente entrevistou que ele pegou um período que ainda tinha muitos barracos. Você chegou a ver isso?

Reinaldo: Eu morava num barraco. O barraco nosso era bom, rapaz, era divertido. Na época do calor era quente de verdade. Na época do frio você tinha uns ventinhos que vinham abanando na orelha. Eu me lembro que eu colocava na greta das madeiras, ia colocando uns papeizinhos pra tampar onde os buracos eram mais firmes. Uma vez apareceu uma goteira em cima da minha cama. Eu olhava, era alta, falava vou ter que dar um jeito. Eu peguei um pauzinho, enfiei um plástico na época da chuva. Escorria pela goteira e caía no balde, eu dormia sossegado, não tinha mais a goteira caindo em cima da cama! [Risos] Era divertido! Graças a Deus, o nosso meio era com pessoas muito simples, tinha muito barraco, muita gente muito simples, mas eu acho que vivia muito bem. Porque você partilhava o que tinha. Você chegava na casa de um colega. Eu lembro da Dona Maria lá na QNF. Falava: “Ô, Dona Maria, Toninho está aí?. “- Vem aqui, menino, come um pão de queijo.” Aí você comia um pão de queijo, tomava um café. Tomava um suco. Você estava brincando ali, dali a pouco uma das mães chamava todo mundo pra lanchar. E era o que tinha. Quando era muito chique era um pão de queijo. Normal mesmo era um pãozinho com manteiga, um suco daqueles de pacotinho e estava tudo certo. Pra gente existia algo diferente do que tem hoje. Hoje se tem muito. Eu até brinco, tem muito e não tem nada. Porque às vezes você mora num apartamento luxuoso e não conversa com ninguém do lado, não tem afinidade, não tem entrosamento. Os meninos às vezes num condomínio chique, mas não tem interação. Os meninos não brincam. Então a gente vê os meninos brancos, parece que tomaram banho de sabão em pó. Porque não toma nem sol. A gente ficava brincando aí de tardezinha as mães saiam pra chamar os meninos, aí cumprimentava, conversava. Então existia mais amizade, embora fosse muito simples era muito rico. Muito rico de afetividade, muito rico de carinho, muito rico de amizade. Então são amizades que a gente carrega pra vida inteira. (Continua…)