Marcello Linhos

“A memória fez com que eu redescobrisse sons,
que eu redescobrisse um interior que fica guardado,
às vezes esperando ser pinçado.
Essa memória é uma memória que vem desde a infância,
desde antes de você ser criança, da pré infância,
em que você vai colocando tijolinhos…
Vai compondo um quebra-cabeça que vai
ficando guardado dentro de você.”

Entrevista com o músico Marcello dos Santos Nunes (Marcello Linhos), morador de Brasília-DF.

Encontro realizado na residência Vereda, Brasília-DF, dia 12 de maio de 2018.
Entrevistadores: Domingos de Salvi, Sara de Melo, Daniel Choma e Tati Costa.
Transcrição: Tati Costa. Fotos e editoração: Daniel Choma.

Marcello Linhos nasceu em Brasília-DF, em 28 de abril de 1972.


Domingos
: Marcello, você é de onde?

Marcello: Eu nasci em Brasília, sou brasiliense da gema. Nasci na Asa Sul de Brasília, nascido e criado. Continuo vivendo aqui, apesar de ter uma vida de viagens, toda semana eu estou na estrada trabalhando. Mas eu vivo em Brasília, sou de Brasília e amo Brasília!

Domingos: E como foi, na infância você já teve contato com música?

Marcello: É. Desde criança que a música me interessou, primeiro como um ouvinte, porque eu peguei a onda dos meus pais que ouviam muita música em casa. A gente tinha muitos LPs e fui me apaixonando pela música e principalmente pela música brasileira. Então eu ouvi muito Geraldo Azevedo, eu ouvi muito Rolando Boldrin, eu ouvi muito Papete, eu ouvi muito Luiz Gonzaga… E depois, na adolescência, caí pro rock. Então comecei a tocar heavy metal – como todo adolescente, a gente quer coisas novas. Foi meu começo na música, com instrumento. Então eu comecei a tocar guitarra, montei uma banda de heavy metal, gravei discos, fiz muitos shows. Mas, mesmo nessa época, eu mantive a paixão pela música brasileira. E junto com a guitarra eu comecei a descobrir a viola. Na verdade, a viola que me descobriu! Parece frase de violeiro, mas é verdade! A viola… “Você não escolhe a viola, a viola que te escolhe” – uma máxima dos caipiras. Viola não se aprende na escola… E comigo aconteceu realmente assim. A viola… Um dia apareceu na minha casa uma viola. Eu estava trabalhando numa peça de teatro e sobrou uma viola. De repente essa viola me foi dada, ela apareceu na minha cama. Eu falei, “mas o que é isso?” “Sobrou lá da peça de teatro”… [Dedilha a viola.] E no primeiro acorde eu simplesmente me apaixonei pela viola. Por já tocar guitarra, comecei logo a compor umas coisinhas e daí a viola me abraçou. E eu fui aos poucos deixando tudo de lado, revivendo as coisas do passado, redescobrindo as coisas da música brasileira, da música regional, revendo a minha família, revendo as minhas raízes… E daí pra frente eu não deixei mais, ela não me deixou mais. Eu coloco numa música minha: não se escolhe a viola, ela que faz opção. E pra mim foi verdade isso.

Domingos: E a sua família, ela é de onde?

Marcello: A minha família, o meu pai é sul mato-grossense e a minha mãe é de Goiás. Então toda a minha família veio de Minas, Goiás, tem uma parte do sul do Mato Grosso e do interior de São Paulo. Ou seja, terra de viola, terra de música regional. Terra de boa música. E isso sempre esteve dentro de casa, acabei absorvendo isso de alguma forma.

Domingos: E na sua família, tem notícia de violeiros?

Marcello: Tem, o meu bisavô. Quem me conta essa história é meu tio e minha tia, que dizem que ele era um exímio violeiro. E que a violinha dele, depois que ele faleceu, ficou jogada num canto e um dia foi encontrada só de cupim. E nenhum registro se tem disso, se perdeu. Eu estou revivendo um pouco o que ele fez de alguma forma, porque acho que não só a música, mas na vida, a gente traz energia de todos os lados, de onde a gente menos espera. E acho que esse amor pela viola não vem de hoje só. Não é piegas falar isso. É uma sensação que vem… Que parece que vem de antes realmente. Então, não tenho ligação direta com músicos violeiros da minha família, mas de alguma forma eu absorvo toda essa caipiridade que a minha família tem! [Risos.]

Domingos: E como foi crescer em Brasília, essa cidade com pessoas de tudo quanto é lugar?

Marcello: Pois é, eu sou apaixonado por Brasília. Eu nasci aqui, eu vi a cidade crescer, Brasília é um lugar que está colocado no centro do cerrado. Então a gente tem realmente uma natureza única. E a gente viu a cidade crescer, o concreto subir no meio de todo o cerrado. Então a natureza sempre esteve presente na minha vida e na vida de todo brasiliense. É uma cidade que abraça quem vem de fora e também que tem muita cultura a ser descoberta. Porque o cerrado central, ele é muito antigo, é um dos lugares mais antigos do mundo. O cerrado em si é uma savana antiquíssima. Então, a cidade no meio disso, uma cidade moderna em cima de uma savana milenar… A gente sempre vai ter pontos a se descobrir, pontos a abraçar. E dentro disso Brasília fez sentido pra mim. Seja na época do rock seja agora, na época da viola, onde eu tenho campo pra buscar, pra beber em qualquer fonte. Então, se quero me inspirar é só eu olhar pro lado e me inspiro num buriti. Mas se você quer fazer rock você está numa cidade moderna, numa cidade jovem, com um bocado de gente falando novas línguas. Então, Brasília é pequena e grande. Ainda pequena, ou já muito grande… Sei lá! [Risos.]

Domingos: Você foi se aproximando da viola depois que deixou o rock? Como foi?

Marcello: É, já na época do heavy metal eu comecei a fazer aulas de viola e a comprar o muito pouco da literatura que existia. Comecei a consumir e aí me deparei com o maior violeiro que eu posso imaginar, que é o Roberto Corrêa. Quando descobri os livros do Roberto Corrêa, me lancei atrás de conhecê-lo. E fui ao encontro dele, comecei a conversar com ele e pedir aulas e toques, e a gente acabou ficando amigo. Hoje somos amigos e ele me abriu o mundo da viola. Depois eu comecei a estudar com ele. Eu o considero meu mestre – acho que nem poderia falar isso, porque não me julgo à altura, mas eu considero ele um mestre. Ele me apresentou muito mais do que as dez cordas, sabe, muito mais do que ponteados. Ele me abriu a cabeça com relação ao instrumento, das possibilidades do instrumento. E isso casou muito com o que eu vivia na época, que era o mundo do rock, da guitarra. De uma certa forma ele me ensinou que você não precisa deixar uma coisa pra ter outra, e que você não precisa nascer caipira pra tocar viola caipira. E você pode trazer toda e qualquer influência pra viola, se você quiser. E eu quis assim. Então, com esse mundo aberto eu não tive que deixar a guitarra, não deixei. Mas me dedico à viola. Não toco mais rock, mas uso a guitarra hoje pra compor trilhas sonoras. Como eu tenho um grupo de teatro, componho muitas trilhas sonoras pro grupo com a guitarra. Uso a viola também, mas basicamente uso muito a guitarra. Então, os mundos se juntam, porque é música, não é? Esse meu disco traz um pouco disso, da gente quebrar um pouco dos preconceitos de falar: “Ah, você é violeiro então você tem que ser caipira. Então, quem é o seu pai? De quem e de onde veio isso?” Não. Veio de um amor que eu descobri e eu estou muito a fim de tocar viola – e vou tocar! [Risos.] Entendeu?

Domingos: Com o Roberto [Corrêa] você teve contato na Escola de Música de Brasília?

Marcello: Sim, eu fiz cursos de verão na Escola de Música com o Roberto, que foi a minha grande escola. Quando o Roberto foi lançar “A arte de pontear…” eu era aluno da Escola de Música e estava numa fase de estudar muito partituras. E recebi um convite do Roberto: “corrige meu livro”. Corrigir as partituras, ver se o que ele escreveu à mão estava certo com o que foi digitalizado. Então, eu estudei o livro do Roberto inteiro antes dele ser lançado, essa foi minha grande escola. E contatos sempre periódicos com o Roberto, que é um cara que entrega a arte dele, o estudo dele, com total desapego. É uma figura incrível nesse sentido. E com ele eu tive muito contato na Escola de Música, nos cursos de verão e contatos pessoais fora, na casa dele e tal. A gente sempre se encontrou e eu sempre aprendi muito a cada palavra dele, a cada olhar. Às vezes num olhar ele falava: “isto talvez não esteja tão bom…” Ou em um olhar ele falava: “pô, é legal isso, vai por aí”. E eu sigo isso, levei isso no meu coração, ele é realmente o meu mestre. A primeira música do meu primeiro disco eu dedico a ele. E não é que ele ponteia comigo no disco? Me deu esse prazer de estar comigo. Então é tudo de bom!

Domingos: E como você vê a importância da Escola de Música de Brasília ter um curso de viola caipira?

Marcello: Pois é, a Escola de Música é um lugar diferente e mágico. A Escola de Música de Brasília, ela une o erudito com o popular, ela tem esse núcleo popular muito forte e eles se misturam. O curso de viola da Escola de Música é uma oportunidade pra quem quer conhecer e pra quem quer descobrir um novo instrumento. É uma oportunidade de ouro porque você  tem toda uma gama de professores de teoria e de todas as outras matérias, de história, e junto você pode fazer o instrumento que você ama, que é a viola caipira. Que infelizmente ainda é tratada de forma pejorativa no Brasil. A viola é o primeiro instrumento de cordas que chegou no Brasil. A viola tem, vai lá, quinhentos anos a mais do que o violão. E ela às vezes é tratada de forma menor. Talvez porque um grupo ou outro, uma vertente ou outra musical tenha levado ela pra um lugar popular, no sentido raso da palavra. E aí ela ficou esquecida. Ou talvez porque a história quis assim… Ou talvez porque o violão se tornou tão grande e apagou um pouquinho a luz da viola. Então esse curso da Escola de Música e todos os jovens violeiros – e aí eu me incluo nisso, de fazer sons novos com a viola – isso junta todo mundo e tenta trazer e traz esse instrumento de volta à tona. E a Escola de Música, com um curso de viola, é uma luz, não é? Em Brasília e tem em outros lugares do Brasil também. Curitiba também, São Paulo, interior de São Paulo, Campinas, grandes violeiros à frente trazendo gente nova, formando gente nova falando da viola.

Domingos: E essa música que você fez em homenagem ao Roberto [Corrêa], lembra um trechinho? 

Marcello: Lembro!

Domingos: Um trechinho ou inteira…

Marcello: Sim. Nessa música, eu apresento a viola para as crianças. Esse meu disco é um disco infantil, é um disco de viola e de cerrado pra crianças. Apresento nesse disco a cultura caipira, a viola caipira e o ambiente do cerrado, o aspecto biológico do cerrado. Então, nessa música eu falo do Roberto [Corrêa] – além dele pontear -, eu falo dele quando digo que o meu mestre me ensinou. Vou cantar pra vocês!

[Canta e toca na viola caipira a música “Violinha Caipira”, de sua autoria]:

Você conhece a viola, menino? Viola caipira
Você conhece a viola, menina? Viola caipira

São dez cordas de aço num braço de pau
Corpo de pinho, som sem igual
Viola brasileira
Nascida em Portugal.

O meu mestre falou que a viola tem alma
Que a viola chora, que a viola fala
Tem gente que diz que a viola é encantada
Por cobra coral e até por fantasma.

Viola, viola, viola, ai ai, viola.

Dez cordas de aço no braço de pau
Corpo de pinho, som sem igual
Viola brasileira, nascida em Portugal.

Viola de arame, viola toeira,
De festa, de pinho, viola de feira

Viola cabocla, dinâmica, mística
Viola chorosa e de cintura fina
Viola de dez e de dois corações,
De Queluz, Serena, viola dos sertões,

Viola brasileira,
Do Divino, da terra e de Reis.

Viola é viola, não é violão,
Fez guerra e paz na cidade ou sertão.
Não se escolhe a viola,
Ela que faz opção.

Você conhece a viola, menino? Viola caipira.
Você conhece a viola, menina? Viola caipira.

São dez cordas de aço num braço de pau,
Corpo de pinho, som sem igual,
Viola é brasileira,
Mas nasceu em Portugal.

Marcello: Ê viola! Eu fico emocionado…

Domingos: Marcello, por que fazer um disco falando sobre viola e sobre o cerrado, pra criança?

Marcello: Bom, esse é o ponto que me motivou. Esse é o ponto que me levou a compor esse disco: as crianças. Eu tive dois filhos e quando os meus filhos nasceram eu notei a falta de literatura de viola, a falta de literatura de cerrado para as crianças. O cerrado, a maior savana, de uma importância imensa, ainda por ser descoberto. Não se tem nada pra criança sobre ele, ou se tem pouco – e de viola muito menos. Cansei de ver menino falando assim: “ô tio, que violãozinho engraçado!” “Não é violão, isso é viola!” Então me veio a necessidade de falar para os meus filhos e para as outras crianças sobre esse instrumento e sobre essa vegetação que a gente vive. Porque eu notei que os meus filhos – e notava nas outras crianças – que às vezes elas estavam fechadas dentro do carro ou dentro de casa sem olhar pro lado, sem notar que ali tem um buriti, que tem um jatobá, que são árvores mágicas, com frutos deliciosos, sabe, com histórias mágicas. E eu não encontrava, como pai, muita literatura e muita música sobre isso. Daí veio uma necessidade: “quer saber? Eu vou compor, eu vou falar, eu vou levantar essa bandeira”.

E daí nasceu o projeto Violinha caipira, que fala de viola, de cultura do cerrado e de cultura caipira para as crianças. Então foi uma necessidade de dentro de casa, primeiro. E como adulto eu também encontrava esse hiato, essa falta de material. Quando comecei a estudar, eu só tinha o livro do Roberto Corrêa que era um livro antigo, antes dele lançar A arte de pontear… Era um livro antigo e só tinha aquilo, não tinha quase mais nada. Aí eu tinha que ir catando e catando… E falei: “e pra criança?” Pra criança quase nada, quase nada. Hoje em dia já tem mais, as pessoas estão se movimentando, a viola está crescendo, está deixando de ser um instrumento menor. Ela daqui a pouco será um instrumento inclusive maior! Então essa minha necessidade veio de dentro de casa, a minha inspiração são as crianças, realmente as minhas.  (Continua…)