Chico de Assis

“Eu simulava muito na roça: colocava minha enxada em pé, colocava o meu chapéu na enxada… E fazia um verso por mim e um verso pela enxada, como se fosse outro cantador. E eu dava um nome e ficava fazendo essa viagem, como se estivesse cantando com alguém. Às vezes, até a voz eu mudava…”

Entrevista com o repentista, cordelista, produtor cultural e arte educador Francisco de Assis Silva (Chico de Assis), morador de Ceilândia-DF.

Encontro realizado em sua residência em Ceilândia-DF, dia 13 de maio de 2018.
Entrevistadores: Domingos de Salvi, Sara de Melo, Daniel Choma e Tati Costa.
Transcrição: Tati Costa. Fotos e editoração: Daniel Choma.

Chico de Assis nasceu em Alexandria-RN, dia 25 de setembro de 1962.


Chico
:  Eu sou natural de Alexandria, Rio Grande do Norte. Estou em Brasília desde 1994, sempre morando em Ceilândia.

Domingos:  Como é que foi a vida aqui no começo? Você veio para trabalhar?

Chico:  O meu trabalho sempre foi cantar, trabalhar com Repente e com Literatura de Cordel. Eu trouxe a família em 1994, mas eu vinha aqui desde 1991. Nesse período ainda tinha muitas pessoas aqui que faziam Cantorias, e essas pessoas tinham o hábito de assistir e de promover Cantorias no Nordeste. Com o tempo essas pessoas foram morrendo, envelhecendo… E foi se perdendo o hábito de fazer as Cantorias de pé de parede. Tanto é que hoje em Brasília não tem quase Cantoria de pé de parede, as Cantorias são mais institucionalizadas por meio de apresentações em projetos ligados ao Governo local ou ao Governo Federal e outras instituições – sindicatos, ONGs, fundações. E hoje pouco se faz Cantoria de pé de parede em Brasília. Eu vim mais em função das Cantorias de pé de parede. Quando foi em 1994, eu fiquei quatro anos diretor da Casa do Cantador, de 94 até 98, no governo de Cristovam [Buarque], na época. E depois fiquei mais dois anos no governo Agnelo [Queiroz] como diretor da Casa. Eu preferi sair porque não tenho mais como ficar em trabalho de instituição pública. Gosto mesmo de fazer o meu trabalho enquanto artista, pra estar fazendo da forma que eu quero, não ter que estar assinando ponto e ficar esperando por um salário que não é muito bem… Que não cai bem para o artista que vive mesmo trabalhando por contrato e de outras formas. Prefiro não ter mais cargo de governo e trabalhar de outra forma. Eu trabalho mais só com Repente e com cartilhas, cordéis, ministro cursos, oficinas, dou palestra e tenho meus cachês para tudo isso que faço. Acho melhor e é mais rentável também.

Domingos:  Como foi o seu processo de aprendizado, quando você começou a ver Cantoria?

Chico:  Olha, eu nasci numa região de cantadores, repentistas. Se a gente for falar de região, é quase todo o Nordeste. E na minha região de Alexandria, Rio Grande do Norte, as pessoas conviviam muito com Cantorias de pé de parede. Também comecei a ouvir rádio a partir dos oito anos de idade e os programas que a gente ouvia era só forró e Cantoria. Como os cantadores andavam nas fazendas, eles cantavam muito na zona rural, eu comecei a Cantoria muito criança, ia com meu pai. A gente morava perto do pai de um cantador. Meu pai era meeiro e trabalhava na fazenda de um fazendeiro que era sogro de um dos maiores cantadores do Nordeste, que foi uma lenda da Cantoria: Antônio Nunes de França, que também nasceu no sítio onde eu nasci. E tinha um sobrinho da mulher dele que era um cantador também famoso: Antônio Fernandes. Eles moravam em Limoeiro do Norte, no Ceará, e a rádio que os dois cantavam entrava muito bem naquela região. Antigamente as rádios varavam o Nordeste todo, não tinha muitas, a frequência era muito livre e as rádios transitavam muito bem e conseguiam alcançar por meio de ondas médias, ondas curtas, ondas longas, elas entravam no Nordeste todo. E a gente ouvia a Cantoria dos dois. Eu tive uma felicidade de nascer perto dessas pessoas e comecei a fazer os meus primeiros versos ainda criança. Comecei na roça, trabalhando na roça e cantando na roça. Eu ouvia os rádios e, nos programas de rádio, eu decorava todas as canções, sabia todos os poemas e canções. Eu via só duas vezes, mesmo analfabeto. Aí eu me alfabetizei aos doze anos, e vim estudar mesmo com afinco a partir dos dezesseis. Na verdade, eu acho que comecei a estudar mais em função da Cantoria, porque nós éramos quase todos analfabetos. Meus pais são analfabetos, eu sou filho de pai e mãe… Meu pai é analfabeto e minha mãe é semianalfabeta. Ela lê e escreve muito pouquinho, mas meu pai é analfabeto de tudo. Era generalizada essa questão do analfabetismo na região. E a Cantoria me potencializou a estudar.

Lembro que comprei um folheto de Literatura de Cordel e duas folhas soltas com dois poemas – e foi através dessas coisas que eu comecei a ler, comecei a perguntar à minha mãe… Fui pro Mobral que era um tipo de supletivo. Antigamente, na zona rural, só estudava à noite. Na verdade, as pessoas não tinham um estudo muito elevado… E quando dou uma volta assim ao passado, vejo que ela era semianalfabeta. Ela sabia era mesmo a questão do beabá, e com duas semanas ela disse que eu não fosse mais à escola porque eu sabia mais do que ela. Acho que era em função da Cantoria, de ter aquela vontade de ler muito. Aí eu lembro que comecei a ler tudo, eu lia todos os livros. Bíblia sagrada li várias vezes ela de fora a fora, e voltava e lia aquelas coisas que as pessoas pediam pra cantar. Porque naquela época as pessoas pediam muito sobre Bíblia Sagrada, mesmo sem saber. Eu acho que era o ato de ouvir alguém pedir, aí pedia: “fala aí, nascimento, vida e morte de Cristo”. Imagine! Você cantar nascimento, vida e morte de Cristo. Outros pediam só o nascimento de Cristo. E algumas histórias importantes como a história de Josué, “Daniel na Cova dos Leões”… Josué que mandou o sol parar, “As Dez pragas do Egito”. A gente cantava muito sobre isso. A história de José do Egito, a questão dos faraós. E as gerações da Bíblia sagrada, você tinha que cantar uma por uma, fulano gerou alguém, alguém gerou… E história geral, a gente cantava muito história geral. Só que os cantadores liam muito, às vezes sem um embasamento de letramento. E às vezes eles eram, em função disso, muitos eram reacionários… Também em função da Cantoria, que ainda vinha muito daquele ato do elogio. Um pouco de puxa-saquismo também, às vezes até sem entendimento que era… Não sei se era em função da necessidade do momento. Depois os cantadores foram se burilando, polindo mais o seu trabalho e hoje a Cantoria é muito diferente da Cantoria do meu início.

Domingos:  Você chegou a formar dupla? Como foram as suas primeiras duplas?

Chico:  A gente quando começa a cantar não forma dupla, você sempre fica pegando pedacinho de Cantoria dos outros. Você vai pra Cantoria de uma dupla, chega lá e a pessoa diz: “olha, esse menino está começando, põe ele pra cantar”. Você às vezes canta lá no final da Cantoria um pouquinho… Naquele tempo era meio complicado, que alguns cantadores não gostavam de cantar com aprendiz nem dar oportunidade. Os cantadores não davam muita oportunidade para os iniciantes em função da euforia das pessoas que pediam pra cantar com esses aprendizes, na maioria das vezes meninos. No meu caso, eu comecei com dez, doze anos. Aí comecei a cantar muito sozinho, treinando sozinho, depois eu brincava muito. Às vezes simulava… Eu já tinha essa tendência de Artes Cênicas, que sou formado em Artes Cênicas hoje. E depois enveredei pelo lado do teatro até pela questão performática da Cantoria, que a gente não tinha noção nenhuma dessa questão, desse lado performático de postura enquanto artista. Eu simulava muito na roça: colocava minha enxada em pé, colocava o meu chapéu na enxada… E fazia um verso por mim e o verso pela enxada, como se fosse outro cantador. E eu dava um nome e ficava fazendo essa viagem como se eu tivesse cantando com alguém. Às vezes até a voz eu mudava. Às vezes estou pensando e fico viajando, “pô, já tinha essa inclinação pelo lado do teatro…”

E comecei, como falei, na fazenda. Fiz a minha primeira Cantoria aos quinze anos. Na verdade, eu cantava muito errado, não tinha ainda estrutura das rimas e da métrica com perfeição – até em função do meu trabalho, de ter estudado pouco -, mas não tinha a concepção formada mesmo do letramento. Tinha dúvida ainda na escrita e, em função de você ter dúvida na escrita, você está propenso a cometer o erro de rima. Porque às vezes uma palavra pode ser rimada só com o som, mas a escrita está errada. E hoje a gente tem esse cuidado de saber qual é a palavra que tem o som e que não tem a mesma escrita. Às vezes até pela questão da conjugação verbal… E ficava mais fácil de cantar porque você não tinha o cuidado de limpar a Cantoria através da linguagem, ou pelo menos trazer para uma linguagem coloquial, que não é culta – pois cantador não tem como cantar na língua culta -, mas pelo menos na língua coloquial… Ou pelo menos um pouco mais avançada. Quando você não tem essa concepção, fica mais fácil. Por isso que os cantadores não deixavam os mais jovens cantar, porque os cantadores eram analfabetos. Chegava lá era tudo eufórico, cantando muito rápido, o povo se empolgava e o caboclo cantava a Cantoria… E às vezes não queria perder terreno praquele aprendiz. “Não vou cantar com o aprendiz não… Cantar com aprendiz que não sabe cantar nada e que fica ganhando terreno da gente”. Eu não tenho essa preocupação hoje nenhuma, de chegar e cantar com o aprendiz. A gente tem esse conhecimento, mas os cantadores da minha época não tinham esse cuidado que a gente tem hoje, esse entendimento.   (Continua…)