Messias de Oliveira

“A cantoria é igual à lua, não fica velha e nem feia.”

Entrevista com o repentista Messias de Oliveira, morador de Santa Maria-DF.

Encontro realizado na sua residência em Santa Maria-DF, dia 12 de fevereiro de 2018.
Entrevistadores: Domingos de Salvi, Sara de Melo, Daniel Choma e Tati Costa.
Transcrição: Tati Costa. Fotos: Daniel Choma.

Messias de Oliveira nasceu em Nova Russas-CE, dia 26 de outubro de 1957.


Domingos
:  Você é natural de onde?

Messias:  Eu sou do estado do Ceará. Eu nasci no Nordeste brasileiro, no estado do Ceará. Nasci na cidade de Nova Russas, que fica em pleno sertão. Por sinal, eu nasci num sítio, a minha origem é de sertanejo. Minha origem é sertaneja e eu me criei na roça. Naquela época o meu pai era agricultor – meu pai já partiu, já morreu, minha mãe também -, mas eu vivi na roça até os dezessete anos de idade. Aos dezessete anos eu vim pra Brasília. Em Brasília eu fiquei trabalhando alguns dias até ficar de maior, depois eu tirei os documentos e fui pra São Paulo. São Paulo eu fui, trabalhei de metalúrgico um bocado de tempo, depois trabalhei também em transporte de bebidas, vendendo bebida na grande São Paulo. E com o decorrer dos anos, eu assistindo Cantoria… Que eu já era poeta. Já sabia fazer versos e tal, mas não exercia a profissão. E com o decorrer dos anos resolvi também cantar Repente, que é uma coisa difícil. Você cantar Repente, se aproximar um pouco da profissão, da cultura, da Literatura de Cordel… Não é fácil, cada dia que passa você aprende mais um pouquinho. Quando você se conscientiza que não sabe ainda, começa a aprender um pouco. Então é muito difícil esta nossa profissão, a arte de cantar Repente, pra quem não sabe. Porque fazer versos entre aspas é coisa fácil, você cantar razoeira é muito fácil. Mas você buscar uma coisa mais profunda, lá do fundo do baú, já é mais difícil. Então, os cantadores de hoje são muito preocupados com o conteúdo. E a Cantoria é isso. A Cantoria dos cantadores brasileiros nordestinos, do Nordeste do país, os poetas, os aedos, cantadores menestréis que nos seus antepassados, na Grécia Antiga, já cantavam pra rei e rainha, pra professor de escola… Já tinham aqueles convites especiais pra cantarem à noite. Então a viola veio pro Brasil… A Cantoria veio pro Brasil e se imortalizou no Nordeste brasileiro. Tanto é que está mil vezes mais desenvolvida do que na própria Europa. O Geraldo Amâncio, por exemplo, alguns anos atrás ele fez uma viagem pra Portugal junto a Pedro Bandeira. E lá eles cantaram. E o Geraldo falou pra mim que a Cantoria no Nordeste brasileiro se desenvolveu muito. Os cantadores a botaram lá em cima, se preocuparam em renovar a Cantoria. E hoje em dia está muito evoluída, tem cantadores novos por aí cantando o mundo. E eu sou feliz com isso.

Domingos:  Na sua infância o senhor se lembra de Cantoria?

Messias:  Eu lembro que, morando na roça, eu era criança… A primeira Cantoria que eu assisti foi Geraldo Alencar e Dedé Chagas. Dedé Chagas já até morreu, Geraldo Alencar eu acho que ainda está vivo. Então, dois cantadores bons, principalmente o Geraldo Alencar, eles fizeram uma Cantoria perto da minha casa, na casa do Antônio Luiz, que já até morreu também. Cantoria grande, muito boa… Cantoria dessas Cantorias familiares, Cantoria pé de parede. Pé de parede que eu digo é assim: dentro da sala da residência do cidadão. Cantoria de bandeja, porém muito boa, muito bem trabalhada… E uma Cantoria financeiramente bem boa, Cantoria de bandeja. Porém muito bem cantada, foi muito bom. Então eu era criança na época, os meus irmãos foram pra Cantoria e me levaram, e eu assisti aquela coisa e ficou aquilo guardado na minha mente. Ficou na minha lembrança. E eu nunca esqueci. Depois que eu ingressei na profissão e passei a cantar Repente também um belo dia eu estava em Fortaleza e nós fomos fazer um programa de rádio na rádio Primeira Capital de Aquiraz, cidade de Aquiraz, que fica a poucos quilômetros de Fortaleza. E lá encontrei o Geraldo Alencar, que eu tinha assistido a Cantoria dele lá no sítio, na época que eu era criança. E aí foi uma farra, fizemos o programa juntos, lá fomos cantar. E ele tinha uma Cantoria, à noite me levou pra Cantoria. Pra mim foi uma felicidade ter encontrado ele nesse dia. Fizemos uma Cantoria boa na casa de um pessoal muito bacana, matei a saudade também, pois fazia muito tempo que eu tinha visto ele e foi bom. Então são coisas que se passam que a gente não esquece. As coisas boas eu procuro sempre guardar na gaveta da memória.

Domingos:  E como o senhor começou a tocar viola?

Messias:  Eu já gostava da viola desde criança, sempre gostei de viola. Para mim é um instrumento que está comigo dia e noite. Eu, desde criança ouvia os cantadores cantando Repente, tocando viola e eu me emocionava. Ficava fascinado quando chegava numa casa do interior, que eu olhava pra um canto da sala e via uma viola. Então aquilo me prazerava, eu ficava cheio de alegria. O som da viola à tarde, dos programas de rádio que os cantadores apresentavam e cantavam… Eu escutava o som da viola e eles cantando… Sempre achei bacana a viola. Tanto faz a viola nordestina como a viola caipira do Centro-Oeste, do Sul, de São Paulo, de Minas Gerais, de Goiás, eu acho bacana. Sendo viola, pra mim eu acho bacana. Tanto que falei ontem pra você, que eu não perco um programa de viola. Programa sertanejo, se eu estiver em casa eu assisto.

Domingos:  E o Cordel teve uma importância na sua infância?

Messias:  O Cordel teve uma grande importância na minha infância. Eu me criei ouvindo os cantos, porque naquela época os cantadores também cantavam romances, que são os folhetos. E romance, romance grande… Tem livretos de trinta e duas páginas, como por exemplo, “Josafá e Marieta”, “Mizael e Minervina”, “Pavão misterioso”, “Floriano” e por aí vai. São muitos romances. Então eu ia pras Cantorias à noite, no fim de semana que no Nordeste sempre tem… Os cantadores cantavam romance, eu achava aquilo bonito. Que fosse romance de amor, de amor e luta, achava bacana. E depois, já na minha adolescência, comecei a ler folhetos de Literatura de Cordel também, uns romances, e comecei a prestar atenção e aprendi a ler. Eu era menino, mas aprendi a ler lendo romance, lendo os folhetos. Pra mim teve uma grande importância na minha vida. Que além de ser uma coisa que eu gostava do conteúdo da coisa, da cultura da Cantoria em si, da Literatura de Cordel, era também uma parte educativa.

Domingos:  Qual é a relação entre o Cordel e a Cantoria?

Messias:  O Cordel e a Cantoria, eles viajam juntos. A diferença que existe é que a Cantoria geralmente é feita de improviso. A Cantoria você canta improvisando, fazendo Repente. Porque mesmo que você queira escrever uma Cantoria, pra você fazer ela escrita, ela não vai ter a mesma poética quanto a Cantoria cantada de improviso, feito de improviso. Porque no improviso você sempre traz alguma novidade na transmissão daquilo que você está fazendo. Entendeu? É Repente. No Repente sempre aparece uma estrofe diferente, uma coisa mais profunda, mais científica, que seja sertaneja, que seja o cotidiano do dia a dia, que seja o amor, que seja a natureza. O improviso é uma coisa que se renova sempre e que se transforma. E que voa sem sair do canto. Então o improviso é uma coisa muito divina. É isso. Mesmo que você queira escrever algumas estrofes pra cantar, mas não vai funcionar bem a coisa, porque a sua mente já é acostumada a improvisar. Por mais que você faça na caneta alguma coisa bonita, mas é muito cansativo. E não tem a mesma essência, aquela mesma poética quanto cantado no improviso. De forma que se você for só escrever pra cantar, pra transmitir pro povo através da viola, chega uma hora que alguém pode lhe abordar um assunto, lhe dar um assunto na hora pra você cantar e sua mente está acostumada a canetar. Tipo o poeta da Literatura de Cordel, aquele que só escreve também. Então sua mente está acostumada apenas a escrever, aí você perde muito terreno com isso, porque você está acostumado naquilo. E o repentista não. Já está dizendo: repentista, é o que faz na hora. Ele já é acostumado. Que seja em casa, que seja na rua, na escola, na fábrica, onde quer que seja. Ele vai fazer uma apresentação, alguém dá um assunto pra ele na hora e ele é acostumado naquilo. Então ele desenvolve com bem mais eficiência.

Domingos:  Quais são [os temas] mais cantados no Repente?

Messias:  Hoje em dia o povo está muito preocupado com essa questão política do dia a dia, mas ainda canta muita coisa também falando no sertão, nas nossas origens, de onde viemos, de onde somos, de onde nós nascemos um dia. E a questão também das drogas, o pessoal sempre pede esse assunto, a adolescência, a tecnologia do momento… E por aí vai.

Domingos:  E o que são os gêneros, as sextilhas…?

Messias:  Ah os gêneros. A sextilha é indispensável. A sextilha… Em todos os lugares que você vai cantar, a não ser que o povo peça pra começar logo cantando outra coisa, porque o cantador canta muito pro povo. Então, o pedestal da Cantoria é a sextilha. Geralmente você começa com sextilha. Em todos os lugares que você vai, você começa com ela. Começa e às vezes canta muito, muita sextilha. Porque dentro da própria sextilha, do conteúdo da própria sextilha, você canta vários assuntos, entendeu? Você canta vários assuntos: canta o sertão, canta o amor, fala da natureza, na lua, nas estrelas, na namorada, no povo do sertão, na política, enfim, no cotidiano do dia a dia. Então isso está dentro do próprio contexto da sextilha. E por aí vai. E tem outros estilos também, como por exemplo o martelo agalopado. Você canta ele às vezes solto… Solto que eu digo é sem ser tema, sem ser mote. Às vezes canta o desafio no próprio martelo e às vezes canta os temas, os motes, que são formações de palavras e sílabas criados na hora. E o mote em sete também. E outros assuntos. Aliás, tem outros estilos, como por exemplo o “Voa sabiá” e “Coqueiro da Bahia”, que são duas modalidades que a gente sempre está cantando nas Cantorias que a gente faz. Galope na beira do mar, que é uma coisa muito bacana também e que já vem há muitos anos acompanhando a Cantoria… Quadrão mineiro, quadrão perguntado. Mourão voltado e quadrão, que são dez sílabas. Aliás, oito sílabas, “oito pés de quadrão”, o pessoal chama. Então esse é o quadrão original, que é uma Cantoria até mais velha também. E tem o gabinete também. O gabinete é outra modalidade. E são várias modalidades. “Me responda cantador” também é uma modalidade, um pergunta e o outro responde.

Domingos:  Como é a questão do mote?

Messias:  O mote é como eu acabei de falar pra você. Que o mote tem o mote em sete, sete linhas, e tem o mote decassílabo, que é o martelo agalopado, são dez linhas. São formados no próprio pedido do conteúdo do mote, são formados já o nome do mote ou a junção de rimas. Como por exemplo: “eu nasci lá no sertão e sinto saudades de lá”. Esse é o mote em sete. O mote decassílabo, que é em martelo agalopado, já é diferente. Você diz: “o Nordeste tem sido até agora o reduto da nossa Cantoria”. Criei nesse instante esse mote. Esse é o mote decassílabo. E tem o galope na beira do mar que você canta ele num assunto, ou canta um assunto às vezes falando ao povo, um assunto dirigido ao povo. Ou então você canta um assunto se referindo a outra coisa. A Jesus Cristo, ao sertão, o amor e por aí vai. Se referindo a Jesus tem uma estrofe do poeta Pedro Bandeira. Ele escreveu um folheto e uma vez a gente estava cantando num festival na Casa do Cantador. E ele estava recitando o trabalho desse folheto se referindo a Jesus Cristo em galope da beira do mar. Ele até me deu um folheto, eu não sei onde está esse folheto. Aí eu decorei uma estrofe dele recitando na hora que diz… Não é meu, é do Pedro Bandeira, que diz, se referindo a Jesus Cristo:

Jesus que perdoa os fracos de ações
Estrela da paz, remédio da guerra
A única pessoa do céu e da terra
Que entende a linguagem de todas nações
Morreu coroado entre dois ladrões
Cuspido e zombado da voz popular
Tirou na história primeiro lugar
Pendeu a cabeça pro lado direito
Pra todos os séculos merece respeito
Nos dez de galope da beira do mar.

Messias:  Esse é um estilo de Cantoria, uma modalidade, galope na beira do mar. Mas ele canetou todinho. Que isso não é improviso, isso é canetado. Ele canetou todinho se referindo a Jesus Cristo, por sinal um trabalho muito grande. Grande que eu digo não é que são muitas estrofes, eu falo é no conteúdo da coisa.   (Continua…)