“Eu trabalhava na roça e ainda tinha que juntar concha na praia, peneirar, pro dono da caieira queimar e fazer cal. Eu fazia renda pra poder me vestir. Porque meu pai, pra vender açúcar e farinha aqui não tinha quem comprasse. Era muito ruim naquela época, sessenta anos atrás era difícil. Quem tinha dinheiro? A gente pegava o sapato pra ir à cidade, ia de pé, era uma vez no ano pra ir no centro comprar uma sandália.”
Rosalva Higina Oda (Vava),
rendeira da Ilha de Santa Catarina.
Entrevista realizada em 17 de abril de 2013
na Armação do Pântano do Sul, Florianópolis – SC
POR TATI COSTA E DANIEL CHOMA | ACERVO: CÂMARA CLARA
ROSALVA – [Antigamente] Tinha respeito, ia deitar era benção, abençoavam, tinha aquela educação bonita. Meu pai criou doze filhos, graças a Deus se criaram todos numa boa, se casaram, não teve um que dissessem que era ladrão. Criou tudo na mandioca, plantava mandioca aqui na Lagoa do Peri, vocês conhecem? Fizemos uma casa, aquilo ali tudo era do meu pai.
Tinha engenho de farinha, engenho de açúcar, ele trabalhava de carpinteiro. Trazia mandioca das areias da lagoinha. Eu remava um canoão grande que ele fez, pra trazer mandioca, milho, tudo lá perto do Peri, aqui nesse morro, virado pra Lagoa. Plantava lá e carregava de canoa pra cá, pra terra, pra pegar o carro de boi, enchia e vinha pra reta ali.
Dava uma trabalheira, eu trabalhava na roça naquela época. Andava de carro de boi pelo caminho, andava a cavalo, tudo eu fazia, pescava com aquele balaio, tinha uma boquinha, o cará entrava pra dentro, eu ia lá às dez horas, já estava cheio de peixe. A Lagoa, naquele tempo, a gente via os peixes por cima da água. Não tinha quase ninguém, era pouca gente.
A gente pegava fácil os peixes, catava só aqueles grandes, escamava, passava sal, pegava um espeto bem grande, enchia e botava no fogo, tinha lenha, ficava amarelinho. Cozinhava feijão, farinha de casa, o açúcar era caseiro. Meu pai fazia num engenho que tinha ali fora. Comia tudo normal: pamonha, meu pai fez uma gamela de madeira com um ralador, eu ia lá e ralava aquele milho puro, fazia aquelas pamonhas.
(…) Aí eu me casei e peguei serviço na escola. Tinha umas seis serventes. Lá eu ajudava tudo, era servente, quando não tinha ninguém pra cozinhar eu ajudava. Diziam: “A Vava não veio hoje?” Meu pé ficou assim chapado de correr descalça. Meu sapato que tenho ali é fininho, desses de biquinho, quem diz que meu pé entra ali dentro? Vinte e seis anos de escola eu tive.
Então eu brincava de vara, corria que era um cachorro! [Risos] E já estava com 70 anos, subia aqui o morro, eu corria aquele sertão [do Peri]. O sertão é só morro, tem não sei quantos quilômetros. Eu ia de pé, descia correndo e subia correndo. Digo pra eles: eu era um cachorro. Eu não tinha dor nas pernas, nem sei contar pra vocês, tão forte que eu era.
Eu ia pro Peri [Lagoa do Peri, no sul da Ilha de Santa Catarina], pegava uma embarcação, levava um homem que tinha uma serraria lá, pra passar a lagoa toda. Ele chegava ali em casa na reta, pedia pra mim levar, eu era mocinha assim como tu. Eu levava ele pra lá, ele me ajudava e pra cá eu vinha sozinha. Vê quantos quilômetros tem daqui lá de água pra atravessar, eu arriscava minha vida, passava perto de jacaré.
Eu tomava banho lá na lagoinha porque lá era só bicho, daqui pra trás nesse morro tinha muito. A lagoa era cheia de jacaré, só tinha um moço que vinha do Rio [de Janeiro] e a gente ia levar ele pra matar jacaré. Eram tantos… Ele matava jacaré, tirava o couro, nós comíamos assado. Ele matava lagarto. A carne do lagarto vocês já comeram?
Eu não sei falar muito bem porque só estudei até a quarta série. Naquela época não tinha ginásio. Estudei lá na Palhoça um pouco, estudei aqui, porque a gente era mais da roça. Eles achavam que naquele tempo mulher não precisava estudar muito. Era mais pra ajudar em casa… Eu sabia ler e tinha uma boa cabeça, vocês podem acreditar.
Esta conversa continua!
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Abaixo, vídeo com trechos do encontro.
Ficha Técnica Local da entrevista: Residência da entrevistada, Armação do Pântano do Sul, Florianópolis - SC. Data: 17/04/2013 Participantes: Tati Costa (entrevista e captação de som); Daniel Choma (entrevista e câmera). Projeto de origem da entrevista: Foto Sensível Armação Parcerias do projeto Foto Sensível Armação (2013): Câmara Clara, Ponto de Cultura Baleeira - Instituto 3 Vermelho; FUNARTE; Mais Cultura, Cultura Viva, Secretaria da Cidadania e Diversidade Cultural, Ministério da Cultura, Governo Federal. Transcrição da entrevista para projeto Memória Rendeira (2021): Tati Costa | Editoração: Daniel Choma Trilha musical do vídeo: Domingos de Salvi | Montagem: Daniel Choma | Pesquisa e Produção: Tati Costa Programação do site: André Bets