“Não é dizer que passava fome, porque na praia tinha tanta ostra… A gente assava e comia pura. O problema era a farinha. O difícil era ter o dinheiro para comprar a farinha, naquele tempo.”
Hadelina Helena Vieira,
rendeira da Ilha de Santa Catarina.
Entrevista realizada em 24 de novembro de 2017
no Ribeirão da Ilha, Florianópolis – SC
POR TATI COSTA E DANIEL CHOMA | ACERVO: CÂMARA CLARA
DANIEL – A senhora nasceu em que lugar?
HADELINA – Aqui mesmo… Logo depois do ponto do ônibus, logo adiante um pouquinho, pertinho, numa casinha na praia muito velhinha. De certo era feita pelos escravos, porque o quartinho tinha as pedras todas por dentro da parede…
Bem pra lá é onde eu nasci, numa casinha na praia, era só um quartinho, uma salinha e uma cozinhazinha de chão, que um senhor tinha feito. Ele ganhou um bocado de telha que estava lá e fez aquele pedacinho pra cozinha da gente, porque senão não tinha.
Ali tinha a cozinha e o quartinho, como estou dizendo pra vocês, por dentro, tinha os bicos de pedra – de certo foi feito pelos escravos – e o lado de fora era liso, imagina: em vez de fazer o lado de dentro liso e o lado de fora podia ficar com as pedrinhas, eles fizeram pro lado de dentro as pedras, tudo aparecendo ali. Se a gente se acordasse de noite e não fosse bem esperta era capaz de bater com a cabeça na pedra!
Mas ali na sala dormia a minha avó, minha mãe, cada um deitava na sua esteirinha e a gente dormia ali. Minha filha outro dia perguntou: “Mãe, muito tempo a senhora dormia na esteira?” Eu disse: “Olha, eu casei e fiquei morando na esteira por muito tempo.” Ela: “Credo mãe!” Eu disse: “Por que? Credo por que?” Porque não tinha cama, era difícil pra comprar e depois, a primeira que tive foi um carpinteiro que fez uma cama.
Depois de muitos anos, lá embaixo, quando fui morar na Prainha, no morro, é que tive então uma caminha comprada na loja. Mas por muito tempo a gente dormia na esteira. Ela disse: “Mãe, quanto tempo?” Eu disse: “Ah minha filha, mas tinha que ser assim, importante era ter onde dormir.” Era a esteira, o travesseiro, a marcela a gente arrumava no morro, tirava aquela marcela, deixava em casa no pôr do sol, vinha aquelas florzinhas, vinha alguma fechadinha e no sol elas abriam tudo. A gente enchia os travesseiros com aquilo ali, mas eram travesseiros tão cheirosos. Naquele tempo era tudo assim.
Mas lá embaixo dizem que vende a tal de marcela, tiram e vendem até para remédio. E a gente tinha travesseiro com aquilo. Botava uma fronhazinha, fazia um saquinho, botava aquilo tudo ali, já era o travesseiro. Por fora uma fronhazinha amarrada com quatro tirinhas. Eu que fiz meu enxoval todo assim, costurando na mão, fazendo as coisinhas assim. Isso levei quando eu fugi, foi a hora melhor da minha vida, porque eu sabia que ia casar.
Era um casamento bonito, eu podia ir… Fui pra praia com a roupinha que eu estava, mas eu podia naquele dia estar de véu, de grinalda e de vestido branco longo e com buque pra dar na hora do casamento. Eu podia casar assim mas eu não pude, pela questão de ser muito pobre eu fui assim, mas pra mim ali era a hora do meu casamento. Eu tinha dezesseis anos e o meu velho tinha dezenove. Esse momento, pra mim, foi o melhor momento da minha vida. Eu penso isso.
Aqui, sozinha, sempre estou só, mais Deus, mas estou só. Estou lembrando disso, de que aquela hora eu ia ter um homem na minha casa. Porque a gente viver três mulheres dentro de uma casa, a minha avó velhinha. Minha mãe era uma pessoa muito boa, ela não se incomodava com nada não. Sem uma pessoa dentro de casa pra gente pedir pra arrumar uma coisinha, mas não se tinha, era só aquelas três mulheres.
Quando eu arrumei um moço, que eu vi que ia casar, o dia que fugi era um dia maravilhoso. O dia mais maravilhoso da minha vida foi o dia que eu fugi. Depois, quando ganhei minha filha mais velha, que hoje tem 75 anos, aí a gente casou no civil. E depois de muito tempo casei no padre, porque a gente não tinha dinheiro pra casar, tinha que esperar.
Esta conversa continua!
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Hadelina Helena Vieira, ou clique aqui para baixar a Ficha de Entrevista com o resumo dos principais temas abordados.
Abaixo, vídeo com trechos do encontro.
Ficha Técnica Local da entrevista: Residência da entrevistada, Ribeirão da Ilha, Florianópolis - SC. Data: 24 de novembro de 2017. Participantes: Tati Costa (entrevista e captação de som); Daniel Choma (entrevista e câmera). Projeto de origem: Ribeirão Foto Sensível. Parcerias do projeto Ribeirão Foto Sensível: Ecomuseu do Ribeirão da Ilha; Sociedade Musical e Recreativa Lapa; Conselho Comunitário do Ribeirão da Ilha; Grupo de Idosos do Conselho Comunitário do Ribeirão da Ilha; Escola Estadual EEB Dom Jaime de Barros Câmara; Paróquia Nossa Senhora da Lapa (Matriz da Freguesia do Ribeirão da Ilha); Casa da Memória – Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes; Setor de Coleções Especiais – Biblioteca Universitária – Campus Florianópolis – UFSC; Museu de Arqueologia e Etnologia Professor Oswaldo Rodrigues Cabral - UFSC; Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Superintendência em Santa Catarina; Fundação Catarinense de Cultura; Secretaria de Turismo, Cultura e Esporte - Governo do Estado de Santa Catarina; Secretaria da Cidadania e Diversidade Cultural; Ministério da Cultura - Governo Federal. Produção do projeto Ribeirão Foto Sensível (2017) e acervo: Câmara Clara – Instituto de Memória e Imagem. Transcrição da entrevista para projeto Memória Rendeira (2021): Tati Costa. | Editoração: Daniel Choma. Trilha musical do vídeo: Domingos de Salvi | Montagem: Daniel Choma | Pesquisa e Produção: Tati Costa Programação do site: André Bets